Rio Grande do Sul, maio de 2025
Gosto do conceito de que somos o conjunto de nossas memórias.
E é pelo que somos, hoje, que reproduzo aqui o que fui capaz de escrever quando chovia sem parar “na terra em que nasci”.
Bom fim de semana.
UM ANO DEPOIS
AMANHÃ, VOU FAZER SOL (07/05/2024)
Hoje não é sexta-feira, e hoje não é um dia normal na terra em que nasci. Choveu no Rio Grande. Passam barcos nas ruas que caminhei; espantam-se os fantasmas dos vizinhos que um dia eu tive; inundou a sepultura do meu pai.
Na solidão das casas abandonadas, na dor de tantos, na escuridão das águas, nas janelas quebradas, a claridade de uma criança:
— Olha, parece nosso filho! — Filho?
— Pai, amanhã vou fazer sol. Você vem?
TERRÍVEL MAIO (10/05/2024)
Reza a lenda que o escritor americano Ernest Hemingway, Nobel de Literatura em 1954, ganhou um belo dinheiro de seus colegas de profissão apostando na possibilidade de contar uma história completa usando apenas seis palavras: “Vendem-se sapatos de bebê. Nunca usados.”
Moro no Brasil — nenhum prêmio Nobel —, e nasci no Rio Grande do Sul. Hoje é sexta-feira, dia 10 deste terrível maio de 2024, e voltou a chover:
— São Pedro, meu velho, agora chega!
Hoje eu preciso escrever;
e na escrita que choro, o abraço que não posso,
as mãos que não alcanço.
Hoje eu preciso cantar;
pelos beijos que darei em vocês e nos seus,
amores meus,
quando as águas baixarem.
AS COMPORTAS DO CÉU (17/05/2024)
Durante quarenta dias e quarenta noites a chuva caiu sobre Novo Oeste.
Manoelzinho, um dos loucos da cidade, na falta de formigas para seguir e xingar, disse upa, inclinou-se para trás e, olhando para os céus, começou a gritar com as nuvens. Depois, aborrecido, caminhando e apontando um dedo alternadamente em direção à prefeitura e à igreja, resmungou que sentaria na praça até parar de chover.
As águas prevaleceram nas ruas e alagaram Novo Oeste.
A última noite de chuvas encontrou Manoelzinho de alma encharcada, triste, sentado no banco do ponto mais alto da praça central, balançando as pernas enfiadas na água barrenta e ralhando baixinho com os besouros que morriam afogados, traídos pelos reflexos dançantes das luzes da cidade.
As águas permaneceram sobre Novo Oeste cento e cinquenta dias.
Manoelzinho só voltou à praça na primeira noite completamente sem nuvens. Chegou caminhando do seu jeito, inclinado para a frente e, na falta das formigas, na frente do banco em que enfrentara as chuvas, abaixou-se e apanhou um besouro; inclinou a cabeça junto ao punho fechado como quem ouve um segredo e, fazendo seu upa, mirou as estrelas. Depois, decidido, ergueu seu corpo sem tirar os olhos dos céus e elevou suas mãos abertas, oferecendo liberdade para o besouro – o caminho das estrelas.
Inclinado para a frente, Manoelzinho foi embora. Suas lágrimas nunca fizeram mal a ninguém.
SABEDORIA (24/05/2024)
Ontem, sufocado pelo silêncio das águas acumuladas, na arritmia rebelde das palavras que tentava e na angústia da ajuda pequena a quem tanto precisa, procurei sabedoria.
Encontrei Irene com os pés enfiados na lama na frente de sua casa, fumando seu cigarro proibido e olhando para cima de olhos fechados:
— Filho, estou aqui, reconstruindo os sonhos que um dia eu tive e a água levou. Que bom que você veio.
Vitor Bertini
Que beleza. Fragmentos poéticos em prosa. Memórias falsas (memórias são sempre falsas) que se enverdadeiram quando narradas com cuidado e delicadeza. Sutilezas verbais.