Troncos broncos
#146 Foram-se as folhas. Ficaram os troncos broncos de braços desproporcionais, incapazes de um abraço.
Copenhague, 12 de maio de 2023.
Foi ontem, contando sobre storytelling para um grupo de arquitetas, no momento das perguntas e respostas, quando uma participante falou na “pobreza estética das almas toscas” e outra ilustrou a frase com “clientes que pedem para tirar a grama e plantar lajotas” que decidi sobre o texto de hoje.
TRONCOS BRONCOS
Viajei. Fiquei longe de casa por seis semanas. Voltei: o vizinho da frente mutilou seis árvores.
Transformou minhas janelas pintadas com o céu colorido das estações em um deserto azul de ventos e nuvens irreconhecíveis. Podou tudo.
Tudo ele pode. O terreno é dele; as árvores são dele, os galhos e as folhas eram dele. Só a vista e os sonhos eram meus.
As folhas mudavam de cor denunciando a passagem do tempo e embalavam meus textos: as do alto anunciavam chuvas, as do meio dançavam ao sabor dos ventos e as de baixo se deixavam tocar. Em dias de sol ofereciam sombra e murmuravam segredos.
Dignas e belas no alto, caídas emprestavam cores e alma aos aplainados caminhos de pedra (da razão rasteira), e sentimentos ao meu cantar.
Foram-se as folhas. Ficaram os troncos broncos de braços desproporcionais, incapazes de um abraço. Incapazes de um verso.
Viajei, não vi o gesto. Perdi a vista. Os sonhos ainda são meus.
Vitor Bertini
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NOTAS ALEATÓRIAS
Tudo ficção. As arquitetas não;
Copenhague foi eleita pela UNESCO a Capital Mundial da Arquitetura de 2023;
Vincent van Gogh – para quem quem anda por aqui – manda lembranças;
Ler dá um barato legal; mas vicia.
Que ele fizesse o que bem entendesse, mas que pensasse bem que o Supremo Tribunal podia se ofender com gracejos.
– O processo, Franz Kafka, Capítulos Inacabados – Para o episódio de Elsa, Editora Círculo do Livro, 1963
Por favor, o meu chapéu.
Bom fim de semana.
Quem rouba paisagens e galhos onde ninhos foram construídos, não sabe da brevidade e das intermitencias do tempo. Menos ainda o tempo que o tempo tem. Bela crônica, comme il faut!
Que beleza de texto. Prosa poética sensível sobre uma base de humor e ironia (necessários para que a narrativa não se torne piegas). Parabéns!👏✊