A serenata dos anjos V
#243 Depois de adulto, nunca tive um sonho bom. Depois da morte da minha mãe, piorou.
Revista Brasileira, 7 de março de 2024
A história de hoje — assim como as quatro últimas edições deste hebdomadário — é um trecho de um texto maior, intitulado A Serenata dos anjos, publicado originalmente no aclamado livro A Profeflor, do escritor brasileiro Vitor Bertini.
Isto posto, e com a generosidade das almas que tomam consciência da brevidade dos tempos, seguem os links para os pedaços anteriores:
A serenata dos anjos I – clique
A serenata dos anjos II – clique
A serenata dos anjos III – clique
A serenata dos anjos IV – clique
Faço mais do que postar links: aviso que na primeira publicação há um esclarecedor texto sobre essa estranha prática de partir o que já foi publicado inteiro.
A SERENATA DOS ANJOS V
…
Nossa nova casa é uma boa casa. Ela tem uma área de árvores e flores perto da cozinha, um gramado grande e um muro baixo, bom de sentar; dentro dela, eu tenho um escritório e uma cadeira de leituras. Do lado de fora, em um lugar que escolhi, tenho um banco de jardim.
Em dois anos nasceu nosso filho, e voltamos a ser três sorrisos.
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Depois de adulto, nunca tive um sonho bom. Depois da morte da minha mãe, piorou.
Primeiro, bastava despertar, virar para o lado e espantar os fantasmas. A seguir, a fase de acordar, ter a certeza de ser pesadelo, pegar um livro e cuidar para não acordar Maria. Nos últimos tempos, despertar virou refúgio e sair da cama uma necessidade.
Em um período especialmente crítico de madrugadas empadas de suor e sobressaltos, o caminho da rua e os olhares para o céu eram pedidos de ajuda para acalmar minha alma. Eu buscava ajuda para entender os choros da Maria, os silêncios do nosso filho, as contrariedades do dia a dia, o meu destino e própria vida. Buscava a serenidade das coisas que fazem sentido. O desaparecimento do pássaro era injusto. Seu desaparecimento não fazia sentido.
Minhas angústias quase desapareceram no dia em que meu filho, chegando em casa, me procurou:
— Pai. Hoje, voltando da escola, um estranho pássaro falou comigo. Pode ser?
— Pode — respondi sem pensar.
A seguir, emocionado, corri ao escritório, recuperei a pena e voltei para beijar meu filho.
— Pode sim — repeti, apertando o abraço — guarde esta pena. É dele! — falei ao seu ouvido.
Depois, enquanto ele examinava a pena, concluí:
— Não conta nada pra ninguém. Nem pra sua mãe.
O desaparecimento do pássaro estava justificado. Agora, fazia sentido: a necessária transição entre gerações, a própria razão da existência. Mais do que nunca, meu filho era eu. Em seus silêncios, a certeza da sua excepcionalidade: ele já falava com o pássaro.
Meu sono estava melhor.
Na noite em que tive uma recaída, uma noite agitada, saí da cama cedinho e fui, em vão, encostado no banco, olhar para os céus. Só quando baixei o olhar é que vi o grupo de freiras com seus enormes chapéus corneta de abas brancas balançando como se fossem asas, caminhando em silêncio.
Também foi só quando baixei o olhar que vi nosso filho espiando na janela. Sereno, voltei para a cama.
Às vezes, na vida, precisamos confirmar nossas certezas.
…
Continua na próxima sexta-feira, dia 14 de março.
Profissionalmente, escrevo; às vezes, falo:
Impressionante: conto mentiras para sobreviver.
— Vitor Bertini
Só para quem quiser se exibir:
O pecado da preguiça — ou acídia em sua forma mais clássica — é um dos Sete Pecados Capitais.
Para as pessoas que pensam que peco, pesquiso o poeta:
“Meu pai, dize, qual é a expiação
do pecador daqui? De que é culposo?
se os pés param, não pare a tua oração.”“O amor ao bem”, disse ele, “defeituoso
de seu dever, aqui se revigora:
aqui se move o remo preguiçoso.Mas, para melhor entenderes, agora
volve tua mente à mim, e te assegura
algum bom fruto da nossa demora.”— A divina comédia, Purgatório, Canto XVII, Dante Alighieri
Tirei a vírgula do segundo não.
Não, não sou vítima do caminho que escolhi,
vivo
escrevendo.
Bom fim de semana e boas leituras.