A serenata dos anjos II
#240 As rotinas da casa mudaram para sempre: nunca mais saí para pescar com meu pai.
Revista Brasileira, 14 de fevereiro de 2025
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A SERENATA DOS ANJOS II
…
Nunca briguei com a rotina. Naqueles dias de casa, escola e rua, a mesa do jantar ficava posta, minha espera era feita de ler revistas e quando meu pai chegava, mamãe sentava ao piano.
Certa noite, diferente do esperado, o jantar foi mais longo, a música mais intensa, a melodia ganhou vida, a pianista cantou, quem jantava mastigou mais forte, eu fui até o piano e encostado na sua lateral vi meu pai levantar-se. Foram dez passos envolvidos pela música, dez passos em direção ao piano e ao sorriso de um menino. Ao meu lado, ainda mastigando, sua mão forte e decidida, para espanto dos meus olhos, fechou a tampa do piano nas mãos da minha mãe. As rotinas da casa mudaram para sempre: nunca mais saí para pescar com meu pai; sozinha, mamãe nunca mais sentou ao piano.
Nossos jardins, antes incorporados ao nebuloso terreno das coisas que existem mas não vemos, assumiram o centro dos haveres de nossos dias: plantar, regar e podar passaram a ser tarefas inadiáveis, flores viravam notas musicais e as horas passavam devagar. Para os serviços de jardinagem mamãe carregava o banco do piano; para o filho, mandou fazer um banco de madeira com vista para os céus. Gostei do banco. Gostei da vista.
Daquele canto do mundo eu via a grama correr até o muro da rua, via a rua, via a esquina mais distante, via nossa casa e seus jardins; via os dedos tortos da minha mãe alisando flores e em silêncio eu namorava os céus.
Não sei quanto tempo da minha vida passei sentado naquele banco, construindo memórias — nunca briguei com o tempo.
— Minha sombra, que você não viu chegar, o tamanho das minhas asas, o som da minha voz e tudo o que digo podem ser apenas frutos da sua imaginação.
— Então, você não existe? — Reagi por impulso, enquanto me virava para ver, pela segunda vez, agora às minhas costas, pousado no gramado, o pássaro que eu sabia que viria.
— Pense como você quiser — respondeu, fixando os olhos em mim. — Se estou na sua memória, tenho a mesma dimensão de seu pai. Seu pai existe?
— Existem as mãos da minha mãe. — Lamentei com voz mais alta, só para ouvir, vindo da nossa casa, a pergunta de uma vida:
— Você está bem, meu filho?
— Estou muito bem, mamãe. — Respondi, procurando identificar o cômodo de onde viera a voz.
— Pensei ter ouvido uma expressão de dor.
— Nada. Estou muito bem. — Repeti ao vento, voltando a olhar para o gramado, novamente vazio.
Depois, por alguns instantes, agucei meus sentidos e esperei em vão. Na ausência do pássaro, pensativo, levantei e fui conferir a pena que um dia eu recolhera e guardara. No caminho de volta do meu quarto, passando na cozinha, beijei minha mãe.
Com a certeza da pena, voltei para o banco.
…
Continua na próxima sexta-feira, dia 21.
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Um dos papos da semana, lá no emplasto Vitor Bertini, diz que escrevo pelo que me espanta e pelo que me encanta:
Quem não tem lenço se despede menos.
— A Bíblia do Caos, Millôr Fernandes, L&PM Pocket
Quem tem chapéu se despede mais.
— Vitor Bertini