A serenata dos anjos IV
#242 Choramos as dores da saudade que sentiríamos e a pena que sentíamos de nós mesmos.
Revista Brasileira, 28 de fevereiro de 2025
A história de hoje — assim como as três últimas edições deste hebdomadário — é um trecho de um texto maior, intitulado A Serenata dos anjos, publicado originalmente no aclamado livro A Profeflor, do escritor brasileiro Vitor Bertini.
Isto posto, e com a generosidade das almas recém-partidas, seguem os links para os pedaços anteriores:
A serenata dos anjos I - clique
A serenata dos anjos II - clique
A serenata dos anjos III - clique
Faço mais do que postar links: aviso, por derradeiro, que na primeira edição há um esclarecedor texto sobre essa estranha prática de partir o que já foi publicado inteiro.
A SERENATA DOS ANJOS IV
…
Nunca tive um padrão de sono. Na manhã em que acordei ao som de um dedilhar de piano, dei um pulo, me vesti às pressas e saí do quarto, só para confirmar quem eram as improvisadas professora e aluna. Cruzei a sala dizendo bom dia, perguntei se alguém queria café e fui para a rua caminhar.
Saí desviando dos olhares e no caminho, pensando em minha mãe, em Maria e naquele piano, como se a vida andasse em círculos, terminei sentado na praça em que ouvi o pássaro falar pela primeira vez.
— A vida é uma coleção de incertezas — disse a voz que eu conhecia, fazendo coro com o vento.
Embaralhado pelo fato de ouvir seu canto sem conseguir vê-lo, olhando para todos os lados, calei. Ele não.
— Foi daqui que você saiu para seguir Maria, mas não volte trazendo sua mãe, o piano e as lembranças do seu pai. Fique tranquilo, suas memórias vão fazer sua vida parecer ter sentido.
Ainda calado, eu sabia o que tinha ouvido; satisfeito, quase exultante, decidi voltar para casa. Eu estava bem. Eu estava muito bem: o tempo continuaria a ser meu aliado; eu estava decidido a não brigar com minhas memórias e eu haveria de entender que as pessoas comuns precisam ver relações causais nos fatos de suas vidas. Eu não era um comum.
— Você demorou. Sua Maria não pôde esperar — afirmou mamãe na minha chegada, apontando um bule de café e dizendo, do seu jeito, que sabia da minha relação.
— Ninguém me contou que vocês iriam encontra-se, nem das circunstâncias ou pauta do evento — respondi por impulso, puxando uma cadeira.
Sentado, lembrei do pássaro, me arrependi da resposta e mudei de assunto. Acho que falamos sobre flores.
.
No passar das estações, na casa que nunca deixou de ser da minha mãe, caminhando entre jardins cuidados a quatro mãos e calado sobre muitas coisas, casei com Maria.
A nova rotina, a rotina de três sorrisos e cheiros bons, durou dois anos. Durou até o dia em que, dobrando na esquina de cima, vi Maria sentada no meu banco, nos jardins da nossa casa. Sozinha.
Abraçados, solidários na vida, choramos a incompreensão da morte. Choramos as dores da saudade que sentiríamos e a pena que sentíamos de nós mesmos. Mais tarde, entre soluços, as primeiras decisões:
— Acho que não devemos seguir morando aqui. Será muito triste.
— Como você preferir — respondi, apertando suas mãos enquanto tentava parar de pensar no meu pai.
…
Continua na próxima sexta-feira, dia 7 de março.
Combatendo os Moinhos de Vento, lá no Instagram:
Impressionante! Hoje, conto mentiras para viver.
— Vitor Bertini
A todos os muito poucos que não lucram com seu ideal.
— Dedicatória de Millôr no Pasquim, MF
Aos que leem.
— Dedicatória de A Profeflor, VB
Bom fim de semana para todos; vou ali na esquina, ver se me espanto um pouco.