Revista Brasileira, 21 de fevereiro de 2025
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A SERENATA DOS ANJOS III
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Não tenho fotos pescando com meu pai, tenho vagas lembranças. Incorporado em minhas memórias, tenho o dia em que ele posou com seus caniços fincados na areia, peixes exibidos em uma das mãos e o braço da outra mão sobre os ombros da minha mãe, então sua namorada. Lembro do cheiro da maresia e sinto espanto na fotografia: a eterna volta daquele momento irrepetível que assimilo como memória; vejo a pose — e sei que sempre que posei não era eu —, e vejo os olhos que viram meus ancestrais.
Tenho memórias de fatos que não vivi. Um dia, perguntada a respeito, mamãe sorriu, largou as flores, levantou, limpou as mãos no avental, veio até onde eu estava e beijou minha testa. Quando voltou, trazia dois cafés, sentou ao meu lado e disse que sabia que eu era especial. Pensei no pássaro e calei. Às vezes, na vida, precisamos confirmar nossas certezas.
Para quem vinha a pé da cidade, Maria morava depois da nossa casa. O trajeto que encantava meus olhos ia da esquina de cima à esquina que eu chamava de mais perto. Quando nosso jardim floria, Maria diminuía o passo. No início, ela sorria para as flores, depois para minha mãe; quando Maria sorriu em minha direção, decidi não brigar com o destino.
— Pensando em namorar? — Cantou a voz rouca que eu não esperava. Não desta vez.
— E se eu estiver, isso faz alguma diferença para você? — respondi sem pensar, incomodado com a pergunta.
— Para mim, nenhuma. Para você, parece, toda — disse o pássaro, alternando seus olhos em direção à rua.
— Não entendo esse seu interesse.
— É você que tem interesse, e eu não me oponho a ele. É você que quer falar comigo e eu estou à sua disposição.
— Por acaso olhei para os céus? Te chamei?
— Você pensa em mim obsessivamente — retrucou o pássaro antes que eu retomasse o fôlego, voltando a cabeça em minha direção.
Assombrado pelo rumo da conversa e procurando argumentos, meu minuto de silêncio foi quebrado com uma insinuação:
— Quem sabe você a convida para ir pescar?
— Eu não faço pose — devolvi saltando do banco, só para ver suas asas abertas no impulso de alçar vôo e ouvir seu último canto:
— Peça ajuda para sua mãe!
Nunca pedi. Um dia, de roupão e chinelos, pedi Maria em casamento.
— Bom dia?! — murmurei incrédulo, interrompendo seu passeio secreto e solitário nos caminhos de nossos jardins.
— Acho que será — respondeu um rosto de olhar sereno, espiando para o céu que amanhecia. — Espero que você não se importe com minha invasão aos domínios da família. Sua mãe sempre me convida.
— Não me importo nem um pouco; pelo contrário, seja muito bem-vinda. Mamãe é uma mulher educada, generosa e sábia — afirmei, sugerindo com um gesto de mão a continuação do passeio. — Posso fazer as honras?
A resposta veio acompanhada de um sorriso contido, de um olhar mais demorado e da repetição do gesto que eu fizera:
— Vamos?
Quase cúmplices caminhamos devagar, falamos pouco, apontamos flores, percorremos os canteiros e seguimos até o meu banco; sentados, contamos nossas histórias. Sentado, espiei para o céu algumas vezes e, antes que o sol nascesse inteiro, pedi Maria em casamento.
Sem dizer palavra, Maria abriu um sorriso e beijou a flor que havíamos colhido.
Um pouco mais tarde, quando Maria foi embora, sereno, repetindo seu nome em voz baixa, voltei para a cama.
Nunca tive um padrão de sono.
…
Continua na próxima sexta-feira, dia 28.
Em termos planetários, escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa.
— Ensaios e anseios crípticos, Paulo Leminski, Coleção Gazeta do Povo
Teimoso, insisto:
A Profeflor, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Não me abandone, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Os rumos da semana, lá no Instagram:
A língua portuguesa é um desterro, um exílio, um confinamento.
— Ensaios e anseios crípticos, Paulo Leminski, Coleção Gazeta do Povo
Exilado, eu quase verso:
José conhecia seus caminhos — pisos, personagens, pedras e paisagens.
Um dia, bem cedo, manhãzinha mesmo, com as chaves no bolso e as sandálias de sempre, José viu — ninguém contou — encostadas na parede nua, duas palavras vadias. Viu, calou e seguiu.
— Os caminhos de José, Vitor Bertini, A Profeflor
Na despedida, o crédito da foto para Carla Zigon e o endereço no Instagram para os curiosos: vitor_bertini
Entre goles, queijos e beijos, saibas que te perdoo por não leres. Fui.