A correspondência de Alma Lima II
#225 Você me conta da espetacular aventura dos ofícios do poeta Cleber Teixeira, eu lhe devolvo uma história e uma confissão.
Para R.E.
Minha fortaleza, Rio de Janeiro, 8 de novembro de 2024
Querida amiga.
Você me conta da espetacular aventura dos ofícios do poeta Cleber Teixeira, eu lhe devolvo uma história e uma confissão.
Carioca de nascimento, catarina por opção, o Cleber nas suas palavras e hierarquia “tinha em casa uma máquina tipográfica de tempos remotos. Os textos eram compostos letra a letra. Ele criou uma editora de livros feitos à moda antiga. Verdadeiras joias. O nome da editora era Noa Noa, seguindo Gauguin. O Cleber era poeta.”
Sensibilizado, lá me fui a viajar entre edições raras, versos limpos, sua biblioteca notável, um jardim cuidado pela esposa, quatro cachorros e a “vontade de ter livros antes de ser alfabetizado”.
Andei pelos cômodos do poeta que me foram franqueados. Da sala onde ainda mora sua primeira e única impressora, ao escaninho emocional que o levou a criar a editora só para ver seus próprios versos publicados; da primeira edição de 50 exemplares da sua obra 10 Poemas, às mais de 60 preciosas edições de autores escolhidos e tiragens dignas de colecionador.
Na viagem reversa, na porta de entrada de sua editora, um cartazete com a frase Aqui se imprimen libros vale-se da maravilhada reflexão de Dom Quixote ao visitar, em meio às suas aventuras, uma oficina tipográfica em Barcelona. A epígrafe de uma vida.
Da fortaleza em que me refugio, onde nada é impresso mas tudo é lido, até a Biblioteca Nacional são doze minutos de caminhar civilizado. No destino, a certeza de encontrar edições da Noa Noa; nas reflexões ao longo do trajeto, nenhuma lembrança do Cleber entre o que restou da Livros com Alma, apenas uma vaga imagem de letras e girassóis coloridos.
Na biblioteca, acomodado em uma de suas mesas de leitura, lá se foram as horas enquanto o livro Poemas, 1980, cantava seus versos:
Sou um guerreiro discreto
mas tenaz, senhora,
(Passei longo tempo
sob a proteção dos livros
e da casa fechada
mas não perdi o
amor ao combate,
não cultivei o esquecimento).
O prazer da leitura seguiu até o momento em que uma das almas abrigadas nas antigas catacumbas dos religiosos do Carmo — sobre as quais foi construída a “Real Biblioteca” — viesse me assombrar. Espantado, recebi um recado das minhas memórias que, afastadas da consciência, ainda trabalhavam. Eu precisava retornar ao meu apartamento, à minha fortaleza.
No caminho de volta, excitado, a compostura dos passos foi substituída pela acelerada marcha da ansiedade. Na chegada ao mundo dos meus afetos, na sala reservada aos livros pessoais ainda abrigados em uma caixa de papelão da mudança, encontrei o que não lembrava possuir: um exemplar da edição única de Calma mesmo na catástrofe — a apresentação do Cartas a Theo na Inglaterra. Esta era a imagem das letras e girassóis coloridos. Van Gogh!
Dentro do livro, em letra cursiva, um cartão: “Auden, W.H. Ensaio. Composto e impresso manualmente na oficina da Noa Noa. Tiragem: 180 exemplares. Capa de Cleber Teixeira (utilizando desenho de Van Gogh). Florianópolis, SC, 1986.”
No verso da quase ficha catalográfica, um tom informal: “O título é tirado de uma das cartas … você tem sua participação na produção real de algumas telas que guardarão sua calma mesmo na catástrofe.”
Esta é a história.
Agora, minha confissão é simples: estou exibido. Eu possuo um dos 180 exemplares! A livraria não tinha, o Alma tem.
Seu aprendiz e amigo,
Alma Lima.
Sobre o autor do texto de hoje, o Alma Lima:
A lojinha:
Livros do Bertini:
Não me abandone
A Profeflor
Publicações do mesmo cidadão:
Unleashed Stories
A história da sexta
Ficamos assim:
— Não — disse o homem perto da janela, atirando o livro sobre uma mesinha e erguendo-se. — Não pode sair, está preso!
— É o que parece — revidou K. — Mas por quê? — acrescentou em seguida.
— Não estamos autorizados a dizer-lhe. Vá para seu quarto e espere lá. Abriu-se um inquérito contra o senhor, que será informado de tudo no devido tempo.
— O Processo, Franz Kafka
Bom fim de semana.