A correspondência de Alma Lima I
#223 A livraria, por exemplo, parte da minha vida, hoje é memória.
Para R.E.
Rio de Janeiro, primavera de 2024
Minha amiga.
Só agora, passados seis meses do fechamento da Livros com Alma, consegui sentar — uma metáfora para o atraso desta resposta e o simples fato de que consegui, finalmente, retirar os papeis e documentos que ocupavam o assento da minha poltrona e o tampo da escrivaninha. Sou outro homem. Já consigo escrever consegui duas vezes no mesmo parágrafo e sorrir conformado.
Aliás, falando em outro homem, ainda esta semana, no trabalho de organizar minha nova fortaleza, lembrei do seu pai e dos livros que ele mantinha em fascinante “desordem parelha”, no porão da casa em que vocês moravam. Não lembro se ele chamava de biblioteca; mas, confesso, desde o dia em que assisti A Sociedade dos Poetas Mortos, aquele subsolo de livros e temperatura mais fria virou, em minhas memórias, A Caverna — um refúgio mágico de conhecimento, coragem, liberdade e rebeldia. Nós somos o conjunto de nossas memórias.
A livraria, por exemplo, parte da minha vida, hoje é memória. Foi; mas, não foi. Ela é central no que eu sou. Ela é central em como as pessoas me percebem e, como você, perguntam sobre livros, sobre autores e as razões pelas quais saí do mercado livreiro. Sempre respondo que sobre o Brasil e suas circunstâncias falaremos depois. Na verdade, acho que nunca saí da livraria. Só deixei de vender livros. Mudei o endereço, e a nova fortaleza veio junto com uma história interessante.
Vai assim: encerradas as atividades comerciais regulares, recolhido o tapete da entrada, empilhados os livros do estoque, expostos os computadores e desligadas as luminárias centrais, dois improvisados cartazes (um na vitrine mal arrumada e outro na porta de vidro) davam a notícia: “vende-se tudo”. Entraram na loja em liquidação mais pessoas em vinte dias do que nos últimos três meses da livraria. Foram vendidos dois computadores, um vídeo com defeito, as luminárias, duas garrafas térmicas e alguns livros.
Suspendi as vendas quando, invadindo o mezanino, começaram a perguntar pelo preço da minha poltrona de leituras e da minha escrivaninha — que nunca estiveram à venda! Repare na repetição da palavra minha! Quando o Conde Alexander Rostov — Um Gentleman em Moscou — precisou mudar de aposentos durante seu confinamento no Hotel Metrópole, sua escrivaninha aparece como fiadora da sua essência, compostura e auto-controle. No meu caso, a escrivaninha e a poltrona.
Não só suspendi as vendas. Aluguei às pressas um apartamento no centro da cidade — por recato, omito o endereço — perto da Rua do Ouvidor, perto do que um dia foi a loja, perto de onde cisca a minha alma e para onde mandei carregar tudo o que restava na livraria. Um apartamento nu. Eu e meus livros.
Na ansiedade da mudança, a ilusão de que organizar a fortaleza contra as falanges do mal — prateleiras, lâmpadas, duas cadeiras giratórias, arquivos, muitos papéis e documentos, muitas pastas e até carimbos — bastaria. Não foi assim. O ato da comunhão entre o novo endereço com o prazer dos livros parecia não acontecer. Eu, perplexo, simplesmente não conseguia retomar a rotina da leitura.
Dias depois, ouvindo a prudência, sentado em uma das insípidas cadeiras giratórias, esperando a neve cobrir os telhados da vida, vi a solução do meu espanto chegar de mãos dadas com as lembranças de seu pai: ele não lia nas salas do porão! Ele lia no gabinete do andar térreo, ele lia sentado na sua poltrona!
Sereno, com o vagar da sabedoria aprendida, abandonei a cadeira ao seu giro tonto e fui retirar os papeis e documentos que interditavam a poltrona para as leituras, e a escrivaninha para responder às mensagens das amigas.
Acho que é isso. Na frase do escritor William S. Maugham, “adquirir o hábito da leitura é construir para si um refúgio contra quase todas as misérias da vida”.
Seu grato e saudoso amigo,
Alma Lima.
A vantagem de contratar com o céu é que intenção vale dinheiro.
— Machado de Assis
Falando em intenções:
Valor: inestimável
Preço: R$ 60,00 + R$ 10,00 (frete)
Como: PIX 44649397000112 (Esquina do Lombas)
Depois: email bertini.vitor@gmail.com ou WhatsApp 11.98962.5037 com o nome para a dedicatória e o endereço para a remessa
Finalmente: muito obrigado!
Sobre o autor do texto de hoje, o Alma Lima:
Ficamos assim:
Alguém devia ter contado mentiras a respeito de Joseph K., pois, não tendo feito nada de condenável, uma bela manhã foi preso.
— O Processo, Franz Kafka