Vento que venta
#234 Semana passada encontrei uma barata entre meus textos.
VENTO QUE VENTA
Semana passada encontrei uma barata entre meus textos. Ia matá-la com uma combinação de frases curtas, quando lembrei do Samsa — aquela barata do Kafka que não era barata, era escritor. E se não fosse uma barata?
Não matei. Decidi ficar olhando; ela também. Dois segundos, duas antenas. Uma vida.
Longe de ser a minha primeira barata — mas, com certeza, a primeira a vagar entre as histórias que conto —, imaginei-a ciscando entre meus enredos, buscando alimento nas entrelinhas que sussurro e no espanto do que me espanta. Devorando vírgulas; conformada à brutalidade do nosso tempo, vestida para durar mil anos.
Sentado, cuidadoso com a integridade do meu trabalho, afastei os textos mais delicados, abri uma avenida para sua fuga entre parágrafos longos e, curioso com a sua indiferença, ofereci adjetivos suculentos — promessas de sabor e sentido. Tudo em vão.
A seguir, retirada da gaveta das memórias, a frase “barata voa” ganhou vida, voando em círculos cada vez maiores e mais velozes. Barata voa e faz vento. Vento que venta, levanta e mistura papeis; vento que venta e desfaz dos textos escritos. Barata que cresce.
Nos olhos daquilo que agora é inevitável e tem antenas inquietas, vejo a busca incessante da sua dimensão humana; na escuridão destes tempos e no horror das suas formas, o exercício da nossa teimosa e necessária esperança. Com meus textos frágeis espalhados pelo vento, recolho, agora, o que não eu conseguiria matar: o ano novo.
Feliz 2025.
Vitor Bertini
Ótimo texto! E oportuno!