Um sapato
#187 Ao que eu me lembre eu tinha razão. Sou a vítima. Só isso.
Faria Lima, 23 de fevereiro de 2024.
UM SAPATO
Eu não senti a batida na lata nem no chão. Eu vi e ouvi. Ouvi um barulho por dentro, vi o mundo dando voltas e ouvi o grito das pessoas. Depois, não ouvi e não vi mais nada. Acho que senti frio.
Ao que eu me lembre eu tinha razão. Sou a vítima. Só isso. Devo ter tido a solidariedade das pessoas que acorreram curiosas e, atrasadas, correram de volta aos seus caminhos – horrorizadas até breve. Alguém deve ter visto tudo e, gesticulando, contado tudo várias vezes; alguém deve ter ficado olhando a cena até me levarem; alguém deve ter aproveitado para fumar um cigarro; devo ter perdido um sapato e o engarrafamento deve ter sido enorme. Lamentável. Só.
Eu estava calmo, quase contente, acho que ainda caminhava na calçada; eu tinha razão. Grande coisa, eu nunca quis morrer com razão.
Vitor Bertini
Vista as sandálias de um Medici e, na distância da Basílica de São Marcos (Florença), ajude esta página com um café. Depois, com calma, funde um banco.
Acho que a vida é tão curta e passa tão rápido; ora, sendo pintor é preciso portanto pintar.
– Vincent van Gogh
Ilustração do sapato feita pelo aplicativo gerador de imagens Dall-E - OpenAI (Chat GPT), com o prompt: A black and white vintage drawing of a rotten shoe, let alone in an empty street.