Um rei sem nome
#160 Quem primeiro chamou um cão sem nome de Bénya Krik, o Rei, foi Georgy Butka, e essa história precisa ser logo contada.
UM REI SEM NOME
Quem primeiro chamou um cão sem nome de Bénya Krik, o Rei, foi Georgy Butka, e essa história precisa ser logo contada.
Ainda ouviremos tantas coisas sobre Georgy Butka quanto o número de dedos de um homem, menos um. No entanto, por ora, basta sabermos que Butka era açougueiro, lia Babel, ouvia clássicos, enxugava as próprias lágrimas e, jogando nacos de carne na calçada, alimentava cães.
Nos tempos de nossa história, quando Butka jogava nacos de carne na calçada, um cão de pelo com manchas avermelhadas, olhar opaco e dentes à mostra era o dono da rua. Cão de poucos e roucos latidos, Butka o chamava de Rosso, o Vermelho. No dia de nossa história, na expectativa da carne que viria, Rosso havia interditado o lado da calçada, espantando, com seus latidos roucos, três pequenos filhotes que timidamente tentavam se aproximar. Nesse momento, no outro lado da rua, um cão de olhar parado e sem nome observava a cena. No ar, além do sutil cheiro de sangue, acordes de Haydn e sua Paukenmesse. Georgy Butka, o açougueiro, aos berros e no ritmo da música, atirava nacos de carne na calçada:
– Proteína! Proteína, Rosso! Belok! Belok! Proteína para enfrentar o mundo!
Quem viu o que aconteceu, não esquece. Não esquece a tenebrosa dança profana entre o cão vermelho de dentes à mostra e o cão de olhos parados, novato na vizinhança, na mais antiga das lutas, a luta pela sobrevivência.
A música ecoa na rua. Os bailarinos, olhos nos olhos, aproximam-se com passos ritmados. A coreografia é feita de corpos torcidos, dentes à mostra, patas em abraços mortais e saltos na tentativa bárbara de aniquilar o oponente. O derradeiro movimento é feito pela pata do cão sem nome: em um salto brutal suas unhas arrancam um dos olhos do cão vermelho que, assustado com seu destino, sente o gosto do próprio sangue. Fim da luta, fim da dança. Rosso não era mais o dono da rua.
Sentado, batido e sem forças, Rosso viu, com um olho, a carne ser dividida entre os pequenos filhotes e, a seguir, ser trazida para si, nos dentes do inimigo.
Foi assim que o açougueiro, olhando o cão noviço servir a quem havia vencido e mutilado, lembrando das histórias de Babel e seus personagens, gritou:
– Salve, Bénya! Generoso e cruel como um rei! Salve Bénya Krik, o Rei!
Depois, para espanto geral, olhando para a platéia que se formara, disse sem gritar:
– As pessoas adoram reis porque eles podem fazer o bem, pelo mal são apenas temidos.
Bénya Krik, agora nomeado, sentiu no vento os aromas de sua amada liberdade e saiu a passo, como se a vida continuasse a mesma.
Vitor Bertini
Brinque de rei, seja generoso:
Lembrou de alguém?
O texto de hoje é o terceiro capítulo do espetacular livro Não me abandone – a saga de Bénya Krik, um cão de rua, contada pela família que ele adotou, de autoria do locutor que vos fala;
O livro existe e está à venda na Amazon; o gênero é que é de ficção;
As coisas não se misturam à luz do dia: por aqui, escrevo ficção; no mundo do Linkedin trato de business storytelling – uma espécie de parente distante, menos culta, mas bem de vida. Agora, quando a luz do sol ficou vermelha e ninguém sabe se é dia ou noite, aí embaixo, depois da ilustração, vai um texto misturadinho. Gostei dele.
Gosto da expressão inglesa don’t complain, don’t explain*. Gosto do ensinamento, gosto da sonoridade e, na medida do possível, tento obedecê-la. Não é fácil. Hoje, coisas da vida, resolvi reclamar e explicar.
A reclamação: tenho certeza que os fabricantes de shampoo pensam que as pessoas tomam banho de óculos.
A explicação específica: como as embalagens do shampoo e do condicionador (da mesma marca) são praticamente idênticas e a fonte da palavra shampoo é minúscula, ou você toma banho de óculos ou desenvolve algum método de identificá-los que nunca vai poder contar com orgulho.
A explicação genérica: como atividades profissionais eu escrevo e ensino sobre business storytelling. Esse post busca almas generosas que o faça chegar aos fabricantes de produtos para cabelos (essas grandes e poderosas marcas mundiais). Senhores, me contratem para uma palestra ou workshop sobre storytelling. Tenho certeza que as histórias dos meus banhos serão instrutivas e memoráveis.
* A expressão never complain, never explain é atribuída ao Primeiro Ministro Inglês Benjamin Disraeli (1804-1881).
Chega por hoje.
Excelente! Ineditismo criativo bem acompanhado de referências profundamente clássicas. Erudição!