Lições para a vida
#178 Prestando homenagem a seu pai, Fernando costuma descrever-se como um homem parco de carnes.
Aljubarrota, Natal de 2023.
LIÇÕES PARA A VIDA
Prestando homenagem a seu pai, Fernando costuma descrever-se como um homem parco de carnes.
Seu Ignácio, o pai, apesar de orgulhar-se de ter lido “todas as mulheres infiéis, de Anna Karenina à Madame Bovary”, gostava mesmo era de reler as aventuras do seu amigo Dom Quixote, o Cavaleiro da Triste Figura.
Lia um trecho, fechava o livro, ajeitava-se na poltrona e repetia em voz alta que seu herói era de “compleição rija, parco de carnes, rosto enxuto, grande madrugador e amigo da caça”. Depois, acomodado, pedia um café para a primeira alma que lhe cruzasse a vista, aproximava uma banqueta com seu tabuleiro de xadrez, outra com um cinzeiro e acendia um cigarro.
Ontem, olhando suas redes sociais, Fernando levou um susto. Afastou-se da mesa de trabalho e, lembrando da visita de seu pai ao seu quarto de adolescente – a visita de uma vida –, foi vasculhar algumas caixas empoeiradas esquecidas na garagem. Na passagem pela cozinha perguntou por Antônio, seu filho – o neto que seu Ignácio não conhecera.
– Filho, deixa o pai sentar um pouco. – Foi o que disse seu Ignácio naquela noite única, abrindo devagar a porta do quarto.
Fernando lembra de cada palavra dita em voz baixa e, mais do que isto, nunca esqueceu a expressão séria da visita inesperada.
– Vamos conversar. Hoje, o pai vai fazer um discurso e dar um conselho difícil. Vou dizer para você fazer uma coisa que eu não consigo dar o exemplo. Na verdade, vou dizer para você não fazer uma coisa que eu faço. Você sabe, eu fumo. É uma doença. Eu não consigo parar. É uma fraqueza minha. Mas, acredite, faz muito mal. Muito. Neste caso, e você não imagina como é difícil para um pai dizer isto, não faça o que eu faço. Seja mais forte do que eu - não fume.
Fernando nunca mais fumou escondido. Não fuma até hoje.
– Você queria falar comigo? – Perguntou Antônio, avistando seu pai sair da garagem com uma caixa nas mãos.
– Opa, quero sim. Vamos ali no escritório – respondeu, demorando um minuto enquanto tirava o pó da caixa.
Já no escritório, sentados, com um olhar de quem vê afetos, Fernando começou:
– Filho, o pai vai fazer um discurso e dar um conselho difícil. Vou dizer para você fazer uma coisa que eu não tenho tido tempo – ou sabedoria – para dar o exemplo... – E repetiu o discurso que um dia tinha ouvido, agora falando de livros. Depois, como quem fala sozinho, acrescentou:
– Aliás, não sei bem quando nem porque parei de ler.
Ontem, Fernando deu seus presentes de Natal para o Antônio: os dois volumes, gastos pelo manuseio e com manchas de café, do Dom Quixote de la Mancha, edição Lello e Irmão, e um conselho:
– Leia, meu filho. Seja sábio como seu avô, leia muito. Não pare nunca de ler.
– Obrigado, pai. Pena que não conheci o vô; do que mesmo que ele morreu?
– De não conseguir seguir seus próprios conselhos, Tonico.
Foi só depois que seu filho tinha saído que Fernando chorou. Ao apagar as luzes do escritório, desligou seu computador; na tela, ainda aberta, o trecho da postagem que o havia assustado:
– Amiga, disseram que é um tal de Tolstói.
Vitor Bertini
Feliz Natal.
Prezado; como já disseste (ou escreveste):
"Em épocas de mudanças aceleradas, histórias e metáforas são formas naturais de transmitir valores permanentes."
Obrigado pelas boas sextas-feiras desse ano. Desejo um Natal repleto de felicidades.