Um dia na vida da pequena Helena
#175 Nos sonhos, noites boas, ela ouvia os doces mistérios de sons coloridos.
Novo Oeste, 1º de dezembro de 2023.
UM DIA NA VIDA DA PEQUENA HELENA
Com os pés descalços e uma varinha seca, Helena, a surdinha de Novo Oeste, passava os dias rabiscando o chão de terra dos caminhos de ida da cidade onde nascera.
Surda para o mundo, invisível para tantos, ela desenhava pela manhã para ir conferir à tarde; à tarde para ver à noitinha, e pela noitinha para conseguir sonhar.
Nos sonhos, noites boas, ela ouvia os doces mistérios de sons coloridos. Nas noites ruins, empapada em suor, sentia a angústia infinita da busca pelo destino de uma procissão de olhos brancos.
Na ronda de seus dias, ao longo de seus caminhos de volta, sorria para os desenhos preservados, retocava as obras mexidas pelo vento e assinava seus pés na lama quando chovia.
Quando mãos humanas estragavam seus traços, assustada, Helena fugia. Ia procurar Tio Preto, seu vizinho – seu João –, o pintor de paredes da cidade.
Agitada, ofegante, com pressa, a pequena Helena tentava contar a maldade toda de uma vez. Depois, acolhida, apaziguada, com olhar baixo e respiração voltando ao normal, aceitava o carvão que lhe era oferecido e ia desenhar na última parede a ser pintada.
Mais tarde, repartindo um pedaço de bolo, voltavam para casa.
Vitor Bertini
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Não empresto livros. Quanto a compartilhar textos, não sou tão rígido.
Não pode haver dúvidas, senhores, de que por trás das manifestações desta justiça, por trás da minha detenção, consequentemente, para falar de mim, e do interrogatório de hoje, encontra-se uma grande organização em atividade. Uma organização que não apenas emprega guardas corruptos, inspetores e juízes de instrução imbecis, mas também tem ao seu dispor uma hierarquia judiciária de um nível elevado, aliás do mais elevado nível, com seu indispensável e numeroso séquito de empregados, funcionários, policiais e outros auxiliares, talvez até carrascos – e não estremeço ao pronunciar esta palavra. E qual o sentido dessa grande organização, senhores? Prender inocentes e mover-lhes processos sem razão e, na maioria das vezes, sem resultado, como no meu caso. Como seria possível, no absurdo do conjunto de um sistema como este, que a venalidade dos funcionários não viesse à luz?
– O processo, Franz Kafka, Círculo do Livro
No baú do quarto dos avós, um livro de mágicas e um baralho ilustrado com fotos de mulheres nuas.
Bom fim de semana.