Olá.
Madrugada de sexta-feira com música, Novos Baianos, grudada na cabeça:
Besta é tu, besta é tu
Besta é tu, besta é tu
Êta refrãozinho!
Entre uma batucada, uma página, um gole e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
TIA NORMA
Tia Norma não conta a idade. Nunca. Perguntada, alisa os dedos longos, diz que negar a idade é deprimente e fala um número. Qualquer um.
Viúva duas vezes, ela tem voz rouca, quatro sobrenomes, uma biblioteca notável, um patrimônio que ocupa duas horas de leitura, amigos internacionais e a fama, justa, de promover festas e jantares inesquecíveis.
Discreta sobre seus eventos, a única inconfidência que se permite é o quanto seus convidados e amigos não entendem de café.
– Exibem-se no vinho, morrem no café.
Tia Norma - e eu jamais a chamei assim, não é minha tia. É tia da Bruna, minha namorada por um outono e responsável pelas devidas apresentações.
Foi uma noite esplêndida. A recepção era em homenagem a algum importante político, cujo nome não lembro. Entretanto, lembro do meu deslumbramento pela coleção de livros, da ressalva feita pela Bruna quanto ao impedimento da cadeira de leitura da anfitriã, do estupendo conhaque Hennessy Paradis em uma mão, do Shakespeare na outra e da inesperada chegada da dona da casa na biblioteca, abandonando o salão.
– Jovens entre livros é mais interessante do que os velhos argumentos que já ouvi mil vezes – falou uma voz rouca e suave, aproximando-se pelas minhas costas.
– Tia Norma, minha querida! – Surpreendeu-se Bruna, dando um abraço efusivo e alguns beijos em sua tia. – Este é o Fernando, meu namorado. Fernando, esta é dona Norma, minha tia linda.
– Bruna, minha filha, sejam bem-vindos. – Falou, com um gesto de mão indicando toda a biblioteca e tornando a encarar a sobrinha. – Mas, atenção, tenha cuidado. Namorado com conhaque em uma mão e livro na outra é um perigo! Melhor do que isto, só morar em Florença. – Afirmou sorrindo, enquanto voltava o olhar para o livro em minha mão. – Vamos ver… O que o Fernando escolheu para examinar?
– O Rei Henrique IV, Parte I – respondi, mostrando a capa do livro.
– Shakespeare. Sempre inspirador, sempre útil.
– Gosto das máximas do incomparável Falstaff, meu malvado favorito. – Respondi, enquanto largava o cálice sobre uma mesinha de aproximação.
– Sente-se, por favor, fique à vontade. Preciso reaparecer no salão. – Afirmou, enquanto beijava a sobrinha e voltava para seus convidados.
Bruna não percebeu os dois segundos reflexivos da tia, espantada que estava com o convite para que eu desfrutasse da sempre interditada cadeira de leitura.
Alguns meses depois, na troca de estações, terminamos o namoro e a Bruna mudou-se para Florença. Por suposta distração do cerimonial continuei a receber convites para jantares e festas, mesmo sem a Bruna. Compareci em alguns, sempre desconfiando que a anfitriã não lembrava exatamente de onde me conhecia.
O segundo quadrimestre consecutivo de resultados ruins, o impasse no Conselho de Administração e a renúncia do quase eterno Presidente e dois de seus Diretores, foram as razões da convocação de uma inédita Assembléia Geral Extraordinária de Acionistas da empresa em que eu trabalhava, quase escondido no Departamento de Relações com o Mercado, havia três anos.
As notícias sobre a Assembléia e os mais estranhos rumores sobre os acionistas espalhavam-se pela empresa com a velocidade da luz e, apesar de alguns exageros de interpretação, estavam certos: a acionista controladora era uma discreta senhora da sociedade. Tia Norma.
Assembléia marcada, Assembléia realizada. Diante dos resultados ruins, dos impasses insuperáveis e das posições dos sócios minoritários, dona Norma decidiu:
– Vou assumir a Presidência Executiva. – Declarou, já de pé, para a incredulidade, espanto e silêncio de todos. – Vamos ao trabalho.
Foram oito meses intensos e de resultados inigualáveis.
– Eu sabia, exatamente, o que fazer porque eu tinha ouvido seu incomparável malvado favorito - Falstaff, ensinando o Príncipe Hal, que se ele fosse lidar com pessoas, ele precisava entrar no mundo delas. Assim, decidi baixar e fazer reuniões no chão de fábrica e com nossos clientes.
Diante do meu silêncio e admiração, a voz rouca continuou:
– Em compensação, em Júlio César, aprendi que o líder muito rígido e dogmático, corre o risco de ser punido. Ainda em Henrique IV, recolhi a importância de criar uma estratégia e segui-la. Finalmente, em Otelo, abri os olhos para os inimigos, ansiosos em me ver falhar. – Tomou um fôlego, deu um sorriso, fez uma pausa dramática, e concluiu:
– Finalmente, preciso lembrar as lições do Rei Lear quanto ao esquecimento. Não sei bem como lidar com isso.
Com meu aplauso, veio a surpresa:
– Shakespeare. Sempre inspirador, sempre útil.
Só depois é que ela ofereceu-me a cadeira presidencial:
– Sente-se, por favor, fique à vontade. Preciso reaparecer no salão.
Vitor Bertini
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