Caché, 8 de abril de 2022.
Tia Norma é uma personagem que me acompanha há anos. Desde quando eu não escrevia, mas falava. Falava, vejam só.
Entre lembranças, páginas, bons cafés, queijos e beijos, boa leitura e bom fim de semana.
TIA NORMA
Tia Norma não conta a idade. Nunca. Perguntada, alisa os dedos longos, diz que negar a idade é deprimente e fala um número. Qualquer um.
Viúva duas vezes, ela tem voz rouca, quatro sobrenomes, uma biblioteca notável, um patrimônio que ocupou duas horas de leitura no último inventário, amigos internacionais e a fama, justa, de promover festas e jantares inesquecíveis.
Discreta sobre seus eventos, a única inconfidência que se permite é o quanto seus convidados e amigos não entendem de café.
– Exibem-se no vinho, morrem no café.
Tia Norma – e eu jamais a chamei assim – não é minha tia. É tia da Bruna, minha namorada por um outono e responsável pelas devidas apresentações.
Nos conhecemos em uma noite esplêndida: uma recepção em sua casa - menu de quatro pratos, em homenagem a algum importante político, cujo nome não lembro.
Entretanto, lembro como se fosse hoje do meu deslumbramento pela coleção de livros, da ressalva feita pela Bruna quanto ao impedimento da cadeira de leitura da anfitriã, do estupendo conhaque Hennessy Paradis em uma mão, do Shakespeare na outra e da inesperada chegada da dona da casa na biblioteca, abandonando o salão.
– Jovens entre livros é mais interessante do que velhos argumentos que já ouvi mil vezes – falou com sua voz rouca e suave, aproximando-se pelas minhas costas.
– Tia Norma, minha querida! – Surpreendeu-se Bruna, dando um abraço efusivo e alguns beijos em sua tia. – Este é o Fernando, meu namorado. Fernando, esta é dona Norma, minha tia linda.
– Bruna, minha filha, sejam bem-vindos. – Falou, com um gesto de mão indicando toda a biblioteca e tornando a encarar a sobrinha. – Mas, atenção, tenha cuidado. Namorado com conhaque em uma mão e livro na outra é um perigo. Melhor do que isto, só morar em Florença. – Afirmou sorrindo, enquanto voltava o olhar para o livro que eu segurava. – Vamos ver… o que o Fernando escolheu para folhear?
– O Rei Henrique IV, Parte 1 – respondi, mostrando a capa do livro.
– Shakespeare. Sempre inspirador, sempre útil.
– Gosto das máximas do incomparável Falstaff, meu malvado favorito. – Provoquei, enquanto largava o cálice sobre uma mesinha de aproximação.
– Sente-se, por favor, fique à vontade. Preciso reaparecer no salão. – Afirmou, enquanto beijava a sobrinha.
Bruna não percebeu os dois segundos reflexivos da tia, espantada que estava com o convite para que eu desfrutasse da sempre interditada cadeira de leitura.
Alguns meses depois, na troca de estações, terminamos o namoro e a Bruna mudou-se para Florença. Por suposta distração do cerimonial continuei a receber convites para jantares e festas, mesmo sem a Bruna. Compareci em alguns, sempre desconfiando que a anfitriã não lembrava, exatamente, de onde me conhecia.
O segundo quadrimestre consecutivo de resultados ruins, o impasse no Conselho de Administração e a renúncia do quase eterno Presidente e dois de seus Diretores, foram as razões da convocação de uma inédita Assembléia Geral Extraordinária de Acionistas da empresa em que eu trabalhava, quase escondido no Departamento de Relações com o Mercado, havia três anos.
As notícias sobre a Assembléia e sobre os acionistas espalhavam-se pela empresa com a velocidade da luz e, apesar de algum exagero na descrição dos personagens, estavam corretos: a acionista controladora era uma discreta senhora da sociedade. Tia Norma.
Assembléia marcada, Assembléia realizada. Diante dos resultados ruins, dos impasses insuperáveis e das posições dos sócios minoritários, dona Norma decidiu:
– Vou assumir a Presidência Executiva. – Declarou, já de pé, para a incredulidade, espanto e silêncio de todos. – Agora, vamos ao trabalho – comandou.
Foram oito meses intensos e de resultados inigualáveis.
– Eu sabia, exatamente, o que fazer. Há muitos anos atrás, eu escutei seu “malvado favorito” – o Falstaff, ensinando o Príncipe Hal que ele precisava entrar no mundo das pessoas com as quais ele teria que lidar. Foi por isto que decidi fazer reuniões no chão de fábrica, e com nossos clientes – sentenciou a Presidente.
Diante do meu olhar admirado, a voz rouca continuou:
– Em compensação, em Júlio César, aprendi que o líder muito rígido corre o risco de ser punido; em Henrique IV, recolhi a importância de criar uma estratégia e segui-la; e, em Otelo, abri os olhos para os inimigos, ansiosos em me ver falhar.
Depois, tomou um fôlego, deu um sorriso largo, fez uma pausa dramática, e concluiu:
– Por último, preciso lembrar as lições de Rei Lear quanto ao esquecimento. Ainda não sei bem como lidar com isso.
Terminadas minhas palmas de admiração, sob um olhar inquisidor e um indicador apontando os céus, veio minha surpresa:
– Shakespeare. Sempre inspirador, sempre útil. – Falou dona Norma, lembrando a frase da noite em que fomos apresentados.
Só depois é que ela ofereceu-me o cargo e a cadeira de Presidente:
– Sente-se, por favor, fique à vontade. Preciso reaparecer no salão.
Vitor Bertini
TEXTOS RESERVADOS
– Então…
A frase solta, seguida da silenciosa montagem de um sanduíche, era cacoete que Jurema conhecia.
– Diga, Valdemar.
– Diga?
– Você não diz “então” e faz silêncio de graça. Digamos que eu conheça você.
– Então… – balbuciou Valdemar, mordendo o sanduíche e enchendo a boca.
Tudo ficção, sem reclames;
É o que temos para hoje.
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