Sob nova direção
#165 Depois de Novo Oeste, na direção do fim do mundo, não existiam dentistas.
Olá.
Com frequência, começo meus textos encaminhados por aqui com uma data e uma referência a algum lugar, fisico ou imaginário, mais uma menção, nem sempre vaga, ao fato de ser sexta-feira. É mentira: não escrevo às sextas.
Sempre posso argumentar que as histórias são encaminhadas às sextas e que isso seria suficiente para justificar o hábito. Não sei. Já pensei em fazer um texto, melhor, uma história, tratando disso.
Também já pensei no fato de eu gostar de trabalhar com as palavras, seus tons e, quando juntas, seus ritmos. Fato posto, lembrei de alguns músicos que se encantam tanto com seus floreios e improvisos que terminam longe de seus ouvintes – aquilo só é agradável aos seus próprios ouvidos e egos. Mais uma meia dúzia de privilegiados, ou mentirosos.
Também já pensei nessa mania de colocar uma frase curta no fim dos parágrafos. Se é que me entendem. Ponto.
Dito isso e lembrando que ninguém mais lê mais do que alguns minutos, termino essa arenga. Viram a repetição de palavras? Perceberam o chiste?
– Muito bom, Bertini. Esquece o chiste. Vai para o ponto!
– Ponto.
Hoje, sexta-feira, dia 22 de setembro de 2023, trago à colação um presente que recebi em maio de 2005. Obrigado, Mauro.
Depois daqui, em um crescendo, seguem coisas minhas e, mais depois, como nos shows de artistas, a grande atração de hoje, um texto para matar saudades. Não percam.
MINHAS COISINHAS
IMAGEM
Liguei para uma vidente, ela perguntou quem era – desliguei na hora. Não passou confiança.
FUTURO
– Vô, o que é balconista?
TRAMAS PARA TRAMAR
A história do sujeito que vai num sebo, compra um livro cheio de partes sublinhadas e anotações e, ao longo da leitura, começa a receber cartas ou ligações discutindo as anotações como se tivessem sido suas.
O céu é indutor de divindades, monstros e mitos. As luzes das cidades mataram as luzes do céu. Se você não vê o céu à noite, a vida fica trivial – você não imagina a quantidade de deuses que estão à sua espreita.
SAUDADES DE UM TEMPO QUE NÃO VIVI
Elegância: chapéu, suspensório e bengala.
Hormônios: meia com costura, liga de meia e espartilho.
Roupas: botão de braguilha, barbatana e goma.
Mãe: ruge, laquê e permanente.
SOB NOVA DIREÇÃO
Depois de Novo Oeste, na direção do fim do mundo, não existiam dentistas.
Depois da consulta, pela primeira vez sem dor em sete dias, quase exultante, com tempo disponível até o horário de saída do ônibus que o havia trazido, Jean foi caminhar e conhecer a cidade. Acabou pensando na vida.
Viu ruas vazias e sentiu-se acolhido; viu uma praça com um chafariz estragado e achou-a bonita; viu uma ferragem, duas igrejas, duas barbearias, um armazém e uma padaria. No ponto mais distante de sua caminhada, à beira da estrada, viu um restaurante com uma placa dizendo “vende-se o ponto” e reconheceu seu futuro.
Na estrada de volta, já noite lá fora, o reflexo na janela do ônibus trouxe lembranças de seu falecido pai. Sorriu, bafejou o vidro e, com dois traços feitos a dedo, desenhou um guarda-sol.
Bastaram uma reunião e sessenta dias para que Jean, sua esposa Marlene e a única filha, Anyuta, ocupassem as quatro peças na sobreloja do restaurante. Celso, o antigo cozinheiro e colecionador de discos de vinil, renovou seu contrato e seguiu morando no quarto dos fundos, atrás da cozinha.
Agora, dois anos depois do dia em que se mudou para a capital, na primeira visita que fazia ao restaurante e casa do pai, sentada ao seu lado, sentido seu hálito, ouvindo seu silêncio, observando seu armário de portas entreabertas e prateleiras vazias, sentindo o mormaço de uma tarde de feriado em Novo Oeste, Anyuta remexia em uma velha caixa de fotos da família – essa estranha mistura de espetáculo com a coisa terrível que é o retorno do morto – e tentava conversar com seu pai.
– Pai, o que os discos do Celso fazem por aqui?
– Não são mais dele, minha filha.
– São seus? – Perguntou retoricamente.
– Fiquei com eles e a camionete.
Anyuta fechou a caixa de fotografias, alisou a tatuagem que o pai não conhecia, respirou fundo e fez uma tentativa:
– Pai, a mãe me procurou.
Diante do silêncio, mudou de assunto:
– Quando o senhor viaja?
– Viajamos amanhã pela manhã. Levo você.
Na manhã seguinte, Novo Oeste amanheceu como sempre: ruas vazias e o chafariz da praça estragado. Na beira da estrada, na frente do restaurante, a faixa não era original: “Agora, sob nova direção”.
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Em circo pobre, o bilheteiro, dez minutos depois de fechada a bilheteria, entra no picadeiro fantasiado de leão.
Millor Fernandes na 1ª edição, em 21 de maio de 1964, da revista Pif Paf*, reproduzido na edição comemorativa aos seus 40 anos, em 2005:
Como princípio:
I - Estamos convencidos de que o pior da nossa Democracia é que ela acaba sempre na mão dos democratas.
II - Precisamos rever todos os princípios da Justiça Brasileira. Nossa Justiça anda tão complicada, tão cheia de burocracia, que dentro em breve ninguém mais terá coragem de ser malfeitor.
III - Pretendemos meter o nariz exatamente onde não formos chamados. Humorismo não tem nada a ver e não deve absolutamente ser confundido com a sórdida campanha “Sorria Sempre”. Essa campanha é anti-humorística por natureza, revela um conformismo primário, incompatível com a alta dignidade do humorista. Quem sorri sempre é um idiota total ou tem a dentadura mal ajustada.
IV - Nossa intenção básica é fazer com que os homens de bem se arrependam.
V - Os comunistas são contra o lucro. Nós somos apenas contra os prejuízos.
VI - Jamais esqueceremos o fundamental: Da vida ninguém escapa.
VII - Procuraremos mostrar que este país não pode melhorar enquanto o governo gastar todo o seu dinheiro na propaganda da rosca e a oposição colocar todo o seu esforço na condenação do furo.
VIII - Esta revista será de esquerda nos números pares e de direita nos números impares. As páginas em cor serão, naturalmente, reacionárias, e as em preto e branco populistas e nacionalistas. Todos os comerciantes e industriais que não anunciarem serão olhados com suspeita pois “quem não anuncia, se esconde”.
IX - Devemos rever tudo pois estamos seguros de que mais vale um pássaro voando do que dois na mão, cão que ladra só não morde enquanto ladra, e, se o hábito não faz o monge, contudo fá-lo parecer de longe. Por isso a cavalo dado deve olhar-se os dentes com atenção redobrada.
X - Todo o homem tem o sagrado direito de torcer pelo Vasco na arquibancada do Flamengo.
– Millor Fernandes
*Em 21 de maio de 1964, Millôr Fernandes lançou Pif-Paf, versão ampliada e em formato revista da seção homônima que manteve até o ano anterior em O Cruzeiro. Ele, Claudius, Fortuna, Jaguar, Ziraldo e outros publicaram oito números em 1964, até que a perseguição da ditadura militar os fez desistir.
– Instituto Moreira Sales
Fazendo falta, não?
– Vitor Bertini
Alguém viu meu chapéu?
Bom fim de semana.