Sob nova direção
#124 Depois de Novo Oeste, na direção do fim do mundo, não existiam dentistas.
Zensiert, 09 de dezembro de 2022.
SOB NOVA DIREÇÃO
Depois de Novo Oeste, na direção do fim do mundo, não existiam dentistas.
Depois da consulta, pela primeira vez sem dor em sete dias, quase exultante, com tempo disponível até o horário de saída do ônibus que o havia trazido, Jean foi caminhar e conhecer a cidade. Acabou pensando na vida.
Viu ruas vazias e sentiu-se acolhido; viu uma praça com um chafariz estragado e achou-a bonita; viu uma ferragem, duas igrejas, duas barbearias, um armazém e uma padaria. No ponto mais distante de sua caminhada, à beira da estrada, viu um restaurante com uma placa dizendo “vende-se o ponto” e reconheceu seu futuro.
Na estrada de volta, já noite lá fora, o reflexo na janela do ônibus trouxe lembranças de seu falecido pai. Sorriu, bafejou o vidro e, com dois traços feitos a dedo, desenhou um guarda-sol.
Bastaram uma reunião e sessenta dias para que Jean, sua esposa Marlene e a única filha, Anyuta, ocupassem as quatro peças na sobreloja do restaurante. Celso, o antigo cozinheiro e colecionador de discos de vinil, renovou seu contrato e seguiu morando no quarto dos fundos, atrás da cozinha.
Agora, dois anos depois do dia em que se mudou para a capital, na primeira visita que fazia ao restaurante e casa do pai, sentada ao seu lado, sentido seu hálito, ouvindo seu silêncio, observando seu armário de portas entreabertas e prateleiras vazias, sentindo o calor de uma tarde de feriado em Novo Oeste, Anyuta remexia em uma velha caixa de fotos da família – essa estranha mistura de espetáculo com a coisa terrível que é o retorno do morto – e tentava conversar com seu pai.
– Pai, o que os discos do Celso fazem por aqui?
– Não são mais dele, minha filha.
– São seus? – Perguntou retoricamente.
– Fiquei com eles e a camionete.
Anyuta fechou a caixa de fotografias, alisou a tatuagem que o pai não conhecia, respirou fundo e fez uma tentativa:
– Pai, a mãe me procurou.
Diante do silêncio, mudou de assunto:
– Quando o senhor viaja?
– Viajamos amanhã pela manhã. Levo você.
Na manhã seguinte, Novo Oeste amanheceu como sempre: ruas vazias e o chafariz da praça estragado. Na beira da estrada, na frente do restaurante, a faixa não era original: “Agora, sob nova direção”.
Vitor Bertini
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