Sem gelo e sem limão
#248 Frequentar restaurantes fazia parte da graduação na vida.
Porto Alegre, 11 de abril de 2025
Oi.
Sinceramente, eu estava com saudades do formato “papo, ilustração, história, propaganda e a citação de alguém que saiba escrever”.
Entre Cocas e lições, beijos e queijos, aqui, meus votos de boa leitura e bom fim de semana.
SEM GELO E SEM LIMÃO
O pedido era simples:
— Um Coca-Cola Light, sem gelo e sem limão; uma normal, com gelo e limão, e uma Zero, só com gelo.
O índice de erro na entrega do pedido era absoluto. Nunca vinha certo.
Dos sorrisos compreensivos ao tempo dos discursos de ocasião sobre a qualidade dos serviços no Brasil, Fernando tinha orgulho das horas que conseguia dedicar a seus meninos. Frequentar restaurantes fazia parte da graduação na vida. Intervir na realidade também.
Em um dia de calor extremo e humor curto, a prática da intervenção pareceu ser a lição mais apropriada:
— Por favor, gostaríamos de começar pelas bebidas. Você não se importa em anotar o pedido?
— Não se preocupe, senhor. Eu decoro direitinho.
— Eu faço questão que você anote. Pode ser?
— Claro — respondeu a garçonete com um olhar baixo, enquanto vasculhava os bolsos atrás de uma caneta e de um perdido bloco de notas.
As histórias contadas pelos meninos e a escolha do que comer fizeram com que a demora na entrega das bebidas passasse despercebida. O que não passou despercebido foi, como sempre, o fato de vir errado. Em um dia de intervenções.
Decidido, sem trocar palavras com a garçonete que distribuía latinhas e copos sobre a mesa, Fernando se levantou e foi até o balcão, no fundo do restaurante:
— Por favor, quem de vocês serviu as Coca-Colas para a menina que está atendendo lá na frente?
— Algum problema? Posso lhe ajudar? — Respondeu um dos funcionários.
— Foi o amigo que atendeu a comanda dos refrigerantes?
— Fui eu, sim.
— Por favor, eu queria dar uma olhadinha na comanda. Você poderia me alcançá-la?
Dois minutos de constrangida busca na lixeira trouxeram uma comanda alisada e limpa contra o avental do atendente.
— O senhor nos desculpe, ela tinha sido jogada fora. Algum problema no pedido? — Perguntou novamente, agora olhando para a garçonete que se aproximava.
A leitura do pedido foi acompanhada por um silêncio geral e durou um tempo maior do que seria esperado.
— Não, sem problemas. Está tudo bem — afirmou Fernando, devolvendo a comanda.
— Está tudo bem mesmo? — Perguntaram quase ao mesmo tempo a garçonete e o rapaz com a anotação na mão, novamente amaçada.
— Eu só queria conferir uma coisa. Está tudo bem! — Respondeu sorrindo para a garçonete, ainda com a palavra coca seguida de pequenos e indecifráveis rabiscos de caneta gritando em suas retinas. — A menina não sabe escrever! — Pensou repetidas vezes, até chegar de volta na sua mesa.
Foi só quando Fernando sentou que o fato do rapaz não ter acusado os rabiscos fez sentido: ele não sabia ler!
Recostou-se, sorriu para a sua dupla, desabotoou o colarinho, respirou mais fundo e tomou a Coca-Cola errada.
Vitor Bertini
Ler dá um barato legal, mas vicia:
A Profeflor, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Não me abandone, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Se o conhecessem, ele os teria apavorado. Eles eram garotos americanos inteligentes, limpos, otimistas, e ele, um hipocondríaco alemão atormentado que, quando não estava escrevendo obras geniais, estava pensando em se suicidar e ansiando apenas pelo que chamava de um abismo profundo o bastante em que saltar.
— Sobre Heinrich von Kleist, em Para ler como um escritor, Francine Prose, Zahar
Surpreendente. Como em toda sexta-feira, a expectativa de ser surpreendido pelo texto não foi frustrada. Obrigado.