Reflexões de ordenha
#209 Só Pedro Cabeça, que jogava pedra nos cachorros de rua e morava ainda mais longe, na subida do Morro da Cruz, parecia satisfeito.
Novo Oeste, 19 de julho de 2024.
REFLEXÕES DE ORDENHA
Na tragédia faltou energia em Novo Oeste. Na tragédia, parou de chover. Naquela noite, sentado na praça, no escuro, Manoelzinho reviu o céu estrelado da sua infância. Incrédulo, lembrou seus fantasmas; esperançoso, deu um pulo e, inclinado para a frente, reconheceu seus pés molhados. Depois, com um upa, olhando para o céu de abraços abertos, Manoelzinho chorou.
A vida mudou quando as luzes da cidade impediram o homem de ver noites estreladas.
Na casa da tia Mirna alguém aprendia as notas musicais no primeiro piano da cidade. Escala após escala, dia após dia, os acordes repetidos viraram assunto no Clube Central; mesmo quem morava longe dizia que não aguentava mais, nem gostava de pianos. Só Pedro Cabeça, que jogava pedra nos cachorros de rua e morava ainda mais longe, na subida do Morro da Cruz, parecia satisfeito. Ouvia a harmonia, sentava na calçada, largava seu livro, esquecia as pedras e sorria; depois, com o fim da aula, ainda sentado na calçada, abria seu livro e parecia ler.
Quem ouve música e lê, não tem tempo para jogar pedras em cachorros.
Vitor Bertini
Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...
Amo-te assim, desconhecida e obscura,
Tuba de alto clangor, lira singela,
Que tens o trom e o silvo da procela,
E o arrolo da saudade e da ternura!
Amo o teu viço agreste e o teu aroma
De virgens selvas e de oceano largo!
Amo-te, ó rude e doloroso idioma,
Em que da voz materna ouvi: “meu filho!”
E em que Camões chorou, no exílio amargo,
O génio sem ventura e o amor sem brilho!
– Língua Portuguesa, Olavo Bilac
Todos convidados:
A ilustração de hoje é da coleção Vintage Illustrations, Heritage Library
Matérias para quem seguir o dedo:
Afinal, onde fica Novo Oeste?
Um link para reler Novo Oeste, muito prazer;
A foto do Manoelzinho original;
A vírgula do céu.
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