Preso
#251 Alguns dias atrás, escrevendo para um grupo de amigos, afirmei que andava pensando em círculos.
Anteriormente, nesta página: Um homem extraordinário
PRESO
Um dia, na vida, quando pensávamos que existia recato, eu queria ser preso.
A quermesse do colégio — trezentos dias de espera, uma noite, uma fogueira e um poço de ansiedade — tinha, entre tantas atrações, uma cadeia.
A cadeia funcionava assim: uma menina pagava um tíquete e mandava prender você. Você fingia desconforto, reclamava com os amigos e, orgulhoso, era conduzido para um cercado feito por cadeiras, só para ficar olhando as rodas de saias e imaginar, sorrindo, quem seria a autora — e os caminhos daquela decisão. Cada tíquete valia 15 minutos. Um homem por quarto de hora.
Alguns anos depois, quando a espera tinha sido substituída pela fingida indiferença e o recato cedia passo para a ousadia, ser preso podia não ser esperto. Homem por uma hora, era vingança ou despeito.
—
O conceito de andar em círculos, metaforicamente, significa “agir ou pensar de maneira repetitiva, sem sair do lugar, sem avanço real”.
Alguns dias atrás, escrevendo para um grupo de amigos, afirmei que andava pensando em círculos — mais precisamente vasculhando sem norte as prateleiras onde guardo clássicos da literatura, e insinuei as virtudes da prática. Sem contar nada para ninguém, terminei o texto namorando Nietzsche.
Hoje foi diferente: acordei de sonhos ruins. Confinado em meu quarto, ainda deitado, alisei pernas e braços. Isolado do mundo, senti a falta de ter com quem falar sobre tantos assuntos, e, entre incrédulo e ansioso, saí em linha reta. Trôpego, ignorei os autores na mesa de cabeceira; ofuscado pela claridade do dia, cheguei à biblioteca.
O primeiro parágrafo da Metamorfose era certeiro: Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Eu sabia!
Alguns parágrafos adiante, o retrato do meu pesadelo: O quarto de Gregor? Mas que quarto terrível se tornara! Até então, ele só tinha gostado de viver ali. Que quarto tranquilo, confortável, onde nunca faltava nada. Mas agora? O silêncio parecia opressor, o ar, pesado. E ele mal ousava pensar em sair do quarto. Antes, por que deveria fazê-lo? Ele tinha que se levantar e sair para trabalhar. Mas agora? Por causa dessa estranha metamorfose, ele não podia se mexer. E por causa dessa estranha metamorfose, ele não podia sair do quarto. E assim, ele estava preso. Preso!
Ofegante, fechei o livro.
Sentado, suando, lembrei do parágrafo de abertura de O Processo, também do Kafka: Alguém deve ter contado mentiras a respeito de Joseph K., pois, não tendo feito nada de condenável, uma bela manhã foi preso. Preso!
Ainda mal acordado, tentando respirar fundo, lembrei do que tenho testemunhado e do recato da minha infância.
Sozinha na quermesse, a tola ousadia vencerá.
Vitor Bertini
Ler dá um barato estranho, mas vicia:
A Profeflor, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Não me abandone, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
Glossário desta edição:
Glossário: conjunto de termos de uma área do conhecimento e seus significados; vocabulário.
Recato: comportamento reservado, discreto, comedimento nos gestos, palavras ou desejos; pudor antigo, quietude moral ou social diante do mundo.
Quermesse: festa popular, geralmente promovida por paróquias ou escolas, com barracas, jogos, comidas típicas; esperança dos meninos; local das primeiras ilusões.
Nietzsche, Friedrich (1844–1900): filósofo e escritor alemão. Sua linguagem aforística e estilo provocador marcaram profundamente a filosofia, a literatura e a psicanálise do século XX.
Kafka, Franz (1883—1924): escritor tcheco; pai de qualquer coisa kafkiana; candidato a patrono do Brasil.
Samsa, Gregor: o nome científico de um inseto gigante; da família Ungeziefer.
Ousadia: coragem que atravessa a linha do bom senso; atitude de quem se move apesar do medo — ou por causa dele. O contrário de recato, sua sucessora nas quermesses da vida.
Fui: uma das formas de despedida do escritor Vitor Bertini; forma rude de dizer até breve. O mesmo que alguém viu meu chapéu?
Excelente crônica/conto “cronto”. Reminiscências, referências literárias num avanço narrativo que leva ao epílogo esférico que dialoga com o início.✊👏
Obrigado, Pena.
Parabéns pela exposição!
"Sudários: Protocolos Revisitados" – Viva o talento!