Pelo correio
#186 O barato da vida é o improviso – respondia, bem-humorada, sempre que alguém perguntava o que, afinal, andava fazendo.
Saudades do 6º Festival da Sardinha na Brasa, 16 de fevereiro de 2024.
Hoje, muito tempo depois do local supracitado, consternado pelo barulho surdo dos vivas à morte da liberdade, prometo ser breve.
Vale um café?
PELO CORREIO
Lia Pintor era uma mulher honrada. Esconder aquelas fotos havia sido uma reação instintiva e, aparentemente, despropositada.
Desde que fechara seu consultório – “o tal ano sabático”, nas palavras contrariadas de seu marito Romeo –, sua rotina nas terças-feiras era singela: desjejum em casa, academia, feira, pastel na feira, café em casa e depois, como nos outros dias, o que a alma determinasse.
– O barato da vida é o improviso – respondia, bem-humorada, sempre que alguém perguntava o que, afinal, andava fazendo.
O improviso daquela terça veio em meio à monótona abertura da correspondência, enquanto tomava seu café vespertino, na cozinha do apartamento. Em um envelope pardo, sem remetente, endereçado à Dra. Lia, três fotos suas. Três fotos em preto e branco. Só três fotos, nada mais.
O impulso para sumir com aquilo foi instantâneo: em segundos, o envelope dormia entre receitas da culinária baiana. Em minutos, o apartamento já tinha sido percorrido em vão e o rosto, ainda pálido, lavado mais de uma vez.
Somente depois, novamente sentada na cozinha, com as demais correspondências ainda intocadas e o café frio, é que a destinatária se deu conta que mal havia passado os olhos nas fotos e no tal envelope. Mais, não tinha razões para ficar nervosa. “Definitivamente não tem porquê”, pensou, quase sorrindo.
Levantou, decidiu fazer um novo café e, enquanto a água esquentava, resgatou as perturbadoras fotos.
O envelope havia sido postado na sexta-feira anterior, na Agência Central dos Correios, endereçado com uma etiqueta e fechado com cola suficiente para transformar em sólida sua parte superior. As fotos obedeciam um padrão: todas flagravam Lia em passeios casuais, em diferentes bairros da cidade e em dias variados - as roupas mostravam isso.
Terminado o exame pouco revelador, Lia escolheu a poltrona com vista para o parque como próximo destino – seu local preferido de ócio e leituras. Levava a caneca com café quente e, traindo suas preocupações, o envelope rasgado e as fotografias. Ali, com o horizonte como conselheiro, pensando em círculos, Lia lembrou do falecido pai e seu conselho para casos confusos: “Recue para reorganizar a tropa.”
No ensinamento do pai, o envelope voltou para a companhia das receitas baianas e Lia decidiu ficar em casa por uns dias. Sem improvisos.
Na reorganização da tropa, a decisão do silêncio: o marito Romeo, sempre desconfiado, iria enlouquecê-la; as amigas não parariam de ligar e falar; e as colegas psicólogas, tão assustadas como ela, formulariam teses em excesso. Nem com a polícia – em quem de resto não confiava, parecia valer a pena falar.
– Opa, surpresa! Você em casa? – Saudou Romeo, largando os jornais sobre o aparador e vindo beijar a esposa.
– Pois é… vim tomar café, comecei a ler as tais Histórias da sexta e fui ficando.
– Maravilha! Pedimos um japonês?
– Só se você abrir um vinho. Estou precisando.
– De vinho?
– De vinho e de um banho – concluiu Lia, rumando para a suíte do casal.
Por seis dias consecutivos, recolhida, quieta e pensativa, Lia acrescentara às tradicionais opções de lazer e trabalho de quem fica em casa, a obsessiva rotina de buscar a correspondência. Habilidosa para encobrir a situação, as conversas com as amigas tratavam de amenidades; com as colegas, desafiando seu ano sabático, conjeturava alguma supervisão; e as conversas com Romeo - cada dia mais bem humorado e chegando mais cedo, andavam normais.
– Seu Ernesto, a correspondência já chegou?
– Não, dona Lia, ainda não. Mas pode ficar tranquila, seu Romeo já recomendou a gente. Deve ser importante, pode ficar tranquila.
Mais tarde, após o jantar, preparando-se para ir dormir, Lia observa seu marito Romeo colocar creme dental na escova de dentes, e tem um insight.
– Amor, nunca havia reparado, você sempre cobre a escova com pasta de dentes assim? De ponta à ponta?
– Claro. Nenhum extremidade, nenhum cerda a descoberto! – respondeu o marido, com as dificuldades de uma boca cheia de espuma.
– E… me diga, como você faria se fosse passar cola para fechar um envelope? Sabe, desses pardos e de tamanho médio.
Romeo, corou e calou. Lia, nada mais perguntou.
No dia seguinte, terça-feira, voltando do almoço, Romeo recebeu de sua secretária um bilhete sugerindo uma conversa com a Dra. Lúcia de Otelo, renomada colega de sua esposa, para a próxima quinta-feira, 14:00, no consultório dela – endereço anotado no verso.
– Pode pôr na agenda – falou o chefe, resignado, fingindo normalidade.
Naquele momento, na feira, Lia Pintor comia um pastel.
Vitor Bertini
No promessa da brevidade, vou-me. Ficam os votos de um belo fim de semana.
Muito boa a História de Sexta!