Bar Alaska, 28 de julho de 2023.
OUTROS TEMPOS
– Dois mais dois dá quatro.
– Como assim, dá?
– Dá, ué. É o resultado da soma.
– Esse não é o significado do verbo dar.
– Não? Na minha matemática ainda é.
– Você não pode reduzir a vida à matemática, meu amigo. E mesmo ela deve ser contextualizada em uma perspectiva histórica de dominação.
– Ôpa, ôpa, sem reduzir a vida à matemática você me vem com o conceito de “dominação”! Isso não é teoria dos conjuntos? Achei que isso tinha ficado lá na década de bolinhas. Do tempo do nosso vestibular.
– Você precisa aprender o real significado histórico da palavra dominação.
– Cara, eu só fiz uma soma.
– Esse é o problema. Até hoje, você só faz somas e, ao que tudo indica, mesmo sem ter consciência, usa metáforas tendenciosas. Quando você aprender a realmente dividir, vai entender o significado de dominação.
– Dois dividido por dois, dá um.
– Viu? Você acaba de confirmar de uma forma potente a necessidade de ter uma visão crítica do processo como um todo e de aparecer mais por aqui.
– Sério isso?
– Claro, venha mais. Você ainda não conseguiu entender o conjunto – para ficar na sua brincadeira – da conjugação social.
– O resultado não é um?
– O seu “um” exprime a falta de consciência que você tem do real sentido do verbo dar e do conceito de dominação.
…
– Garçom! Mais dois chopes e a conta, por favor.
– Meu grande amigo de escolas e colas! Que satisfação ver você de volta aos bares da vida. Eu é que não vinha muito, né? Você precisa aparecer mais. A gente precisa conversar mais. Quantos anos… Lembro de você na época: cabeludo, cheio de livros, denunciando a censura e puxando greves! Lembra? Eu é que devia ter participado mais.
– Outros tempos, outros tempos… Garçom, obrigado!
– Você já pagou? Quanto deu a conta?
Vitor Bertini
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Lembrou de alguém?
Abri meu livro – o Não me abandone – com uma citação do escritor russo Isaac Bábel:
Uma história bem contada não precisa se assemelhar à vida real. A própria vida tenta, com todas as suas forças, assemelhar-se a uma história bem contada.
Ontem, cometendo o texto lá de cima, lembrei-me de outra passagem envolvendo Bábel: sob pressão do governo Stalin – acabaria assassinado na prisão –, ele começa a escrever cada vez menos. Perguntado a respeito, respondeu que tinha se transformado em um mestre no gênero do silêncio.
Terminei meu livro – o mesmo Não me abandone – com uma frase simples:
Chega por hoje.
Abraços.
Alaska! Boas memórias, meu caro Bertini.