Os verbos da vida de Pedro Mortar
#112 Clarice, sempre só, na segunda conjugação, foi ler.
Edit, 16 de setembro de 2022.
Uma vez escrevi que sexta-feira era um dia de querer tudo, não fazer nada e achar bom. Gostei.
Naquele mesmo dia sugeri que entre conjugações verbais, coisinhas para beliscar, leituras, goles e beijos, todos tivessem um bom fim de semana. Também gostei.
OS VERBOS DA VIDA DE PEDRO MORTAR
A vida de Pedro Mortar foi uma conjugação de poucos verbos.
Ainda menino, nascido em local para não lembrar, aprendeu o sentido do verbo trabalhar. Brincar, passear e namorar, todos da primeira conjugação, nem pensar. Estudar? – Você não vai precisar.
Quando Clarice mostrou seu livro, quem sabe ler?, Pedro resolveu casar. Depois, mudar de lugar.
Na cidade fez dois filhos e o que sabia, trabalhar. Abriu uma loja; o importante era ganhar.
Ficou rico, ficou famoso, foi convidado a palestrar. Clarice educou os filhos; em casa, Pedro só sabia reclamar.
A filha virou mulher, foi morar longe, se afastar. O filho, ao lado do pai, na loja, obrigado a sentar.
Clarice, sempre só, na segunda conjugação, foi ler, viver, crer e adoecer.
Pedro não sabia rezar. Sua mulher ia morrer.
No último dia, ele entrou no quarto da esposa pela primeira vez, desde a briga que ela não queria esquecer. Alisou a colcha, cheirou a pashmina, apanhou um livro sem ler, sentou na cadeira de balanço sem balançar e começou a chorar.
No outro dia, cedo, Pedro foi trabalhar.
Vitor Bertini
Tudo ficção;
Mar calmo e nuvens no horizonte;
I have been known to fence with a quill.
– A Gentleman in Moscow, Amor Towles, Penguin.