Vitor Bertini

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Os olhos de Noé
A história da sexta

Os olhos de Noé

#136 Um dia, Maria Rita foi para o colégio e Noé ficou sentado no pátio – sozinho, distinguindo sombras.

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Vitor Bertini
Mar 03, 2023
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Os olhos de Noé
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OS OLHOS DE NOÉ

Noé nasceu sem sustentar o olhar da mãe. Na ignorância de todos – “distraído esse menino” –, cresceu enxergando pouco. Na proteção de alguns, na vergonha de outros e nas rezas e promessas das velhas, foi sendo criado em casa.

Terceiro filho de uma família numerosa, Noé moldou o mundo às suas vistas embaçadas, virou menino forte e no argumento das madrinhas “não tinha boca para reclamar”.

Cuidava do pátio, dos cachorros e da casa. Conhecia os caminhos da rua e aprendeu a fazer compras. Reconhecia as pessoas pelo vulto e as notas de dinheiro contra a luz. Ouvia música, os gritos de comando da mãe e a voz doce da menina Maria Rita, sua vizinha, desde sempre com medo dos cachorros:

– Venha, não tenha medo. Prendo eles.
– Primeiro você prende, depois eu vou.

Cães presos, ela pulava a cerca e vinha correndo. Subia nas árvores, comia bergamotas descascadas pelo amigo e, pelo menos uma vez, perguntou se era verdade que ele não enxergava direito.

Um dia, Maria Rita foi para o colégio e Noé ficou sentado no pátio – sozinho, distinguindo sombras.

Tempo depois, a morte de um dos cães trouxe a vizinha de volta.

– Mamãe falou que o Preto morreu.
– É verdade – respondeu Noé, olhando como se visse os detalhes de sua amiga. A seguir, puxou duas cadeiras. – Você quer sentar?
– Obrigada, vou sentar sim. Sabe, me deu um remorso – continuou, enquanto examinava o pátio que um dia conhecera tão bem –, eu fazia você prendê-los. 
– Não liga. Agora mesmo, o Branco está preso – afirmou sorrindo.
– Você está bem?
– Sim, triste, mas bem. Com saudades da sua voz por aqui.
– Pois é. Ainda mais difícil agora, que comecei a trabalhar – suspirou a visita, fazendo uma pausa.

Noé calou. Fora do colégio, a vida lhe ensinara muitas coisas. Entre elas, traduzir respirações.

– Estou trabalhando de auxiliar de limpeza na biblioteca da escola – prosseguiu Maria Rita. – Não pagam muito, mas, sabe, eu posso pegar emprestado os livros que quiser. 

A seguir, desviando o olhar e falando baixinho, concluiu:

– Sempre lembro de você quando vejo alguma coleção com imagens bonitas.

Antes que o silêncio virasse constrangimento, Noé retomou a conversa:

– Será que tem algum livro sobre catedrais?
– Catedrais? Acho que sim. Lá tem muitos livros; deve ter algum sobre catedrais.
– Eu gostaria de saber se são parecidas com as dos meus sonhos.
– Se eu achar, posso vir ler suas descrições e histórias para você. Você quer?
– Eu faço o café.

Anos mais tarde, quando a moça de branco veio trazer a notícia de que tinha corrido tudo bem no parto, que a criança era um menino e que Maria Rita estava feliz, Noé viu sua vida:

– Ele é distraído?
– Nada, super atento. Não tira os olhos da mãe.

Chorando aliviado, Noé entrou em sua catedral imaginária. Só queria rezar e agradecer.

Vitor Bertini


Sabe, a página que você está lendo é mantida unicamente por seus leitores, sem patrocínios ou publicidade. Se você acha que essas Histórias do Bertini valem um café por mês, clique no botão verde para tornar isso realidade. Obrigada.
– Maria Rita, ajudante de limpeza.


Esse texto não é uma ficção.
– Rene Magritte*


  • Este texto é uma ficção. Qualquer semelhança com pessoas, cachorros ou pátios reais é mera coincidência;

  • O financiamento coletivo do livro dessas histórias pode ser feito até o dia 15 de março. Link lá em cima, antes do olho.

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