Os olhos de Noé
#136 Um dia, Maria Rita foi para o colégio e Noé ficou sentado no pátio – sozinho, distinguindo sombras.
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OS OLHOS DE NOÉ
Noé nasceu sem sustentar o olhar da mãe. Na ignorância de todos – “distraído esse menino” –, cresceu enxergando pouco. Na proteção de alguns, na vergonha de outros e nas rezas e promessas das velhas, foi sendo criado em casa.
Terceiro filho de uma família numerosa, Noé moldou o mundo às suas vistas embaçadas, virou menino forte e no argumento das madrinhas “não tinha boca para reclamar”.
Cuidava do pátio, dos cachorros e da casa. Conhecia os caminhos da rua e aprendeu a fazer compras. Reconhecia as pessoas pelo vulto e as notas de dinheiro contra a luz. Ouvia música, os gritos de comando da mãe e a voz doce da menina Maria Rita, sua vizinha, desde sempre com medo dos cachorros:
– Venha, não tenha medo. Prendo eles.
– Primeiro você prende, depois eu vou.
Cães presos, ela pulava a cerca e vinha correndo. Subia nas árvores, comia bergamotas descascadas pelo amigo e, pelo menos uma vez, perguntou se era verdade que ele não enxergava direito.
Um dia, Maria Rita foi para o colégio e Noé ficou sentado no pátio – sozinho, distinguindo sombras.
Tempo depois, a morte de um dos cães trouxe a vizinha de volta.
– Mamãe falou que o Preto morreu.
– É verdade – respondeu Noé, olhando como se visse os detalhes de sua amiga. A seguir, puxou duas cadeiras. – Você quer sentar?
– Obrigada, vou sentar sim. Sabe, me deu um remorso – continuou, enquanto examinava o pátio que um dia conhecera tão bem –, eu fazia você prendê-los.
– Não liga. Agora mesmo, o Branco está preso – afirmou sorrindo.
– Você está bem?
– Sim, triste, mas bem. Com saudades da sua voz por aqui.
– Pois é. Ainda mais difícil agora, que comecei a trabalhar – suspirou a visita, fazendo uma pausa.
Noé calou. Fora do colégio, a vida lhe ensinara muitas coisas. Entre elas, traduzir respirações.
– Estou trabalhando de auxiliar de limpeza na biblioteca da escola – prosseguiu Maria Rita. – Não pagam muito, mas, sabe, eu posso pegar emprestado os livros que quiser.
A seguir, desviando o olhar e falando baixinho, concluiu:
– Sempre lembro de você quando vejo alguma coleção com imagens bonitas.
Antes que o silêncio virasse constrangimento, Noé retomou a conversa:
– Será que tem algum livro sobre catedrais?
– Catedrais? Acho que sim. Lá tem muitos livros; deve ter algum sobre catedrais.
– Eu gostaria de saber se são parecidas com as dos meus sonhos.
– Se eu achar, posso vir ler suas descrições e histórias para você. Você quer?
– Eu faço o café.
Anos mais tarde, quando a moça de branco veio trazer a notícia de que tinha corrido tudo bem no parto, que a criança era um menino e que Maria Rita estava feliz, Noé viu sua vida:
– Ele é distraído?
– Nada, super atento. Não tira os olhos da mãe.
Chorando aliviado, Noé entrou em sua catedral imaginária. Só queria rezar e agradecer.
Vitor Bertini
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– Maria Rita, ajudante de limpeza.
Esse texto não é uma ficção.
– Rene Magritte*
Este texto é uma ficção. Qualquer semelhança com pessoas, cachorros ou pátios reais é mera coincidência;
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