Os livros do seu Oswaldo
#247 Dona Alice, de volta ao lar, sozinha, podia passar o café do jeito que gostava.
São Paulo, um dia qualquer dos inacreditáveis idos de 2025
Um dia ainda escreverei sobre as razões pelas quais aquele gato, mesmo diante de tantos canários, terminou comendo mingau.
OS LIVROS DO SEU OSWALDO
Manoelzinho, o primeiro louco de Novo Oeste, caminhava inclinado para a frente, olhava para o chão e xingava as formigas. Dormia na rodoviária — sob as bençãos da gerente Iracyna — e ninguém sabia como alimentava-se. De tempos em tempos, junto com um upa, inclinava-se para trás e, parado, olhando pra cima, xingava as nuvens ou conversava com Deus.
Cada cidadão de Novo Oeste frequentava uma das duas igrejas existentes na cidade e falava mal de quem frequentava a outra. Alternando os domingos, Manoelzinho frequentava as duas. Chegava quando todos já rezavam, parava de pé ao lado de um dos últimos bancos e ia embora, inclinado para a frente, no início dos ritos finais.
O casal seu Oswaldo era novo na cidade. Aos domingos, iam à missa; dona Alice, passos curtos, em silêncio e vestida em tons discretos, apoiava-se no braço do marido que, de tragada em tragada, imaginava estar conversando. Depois da liturgia, agradecendo os convites com pequenos acenos de mão e sorrisos, evitavam a roda do cafezinho da igreja e iam para casa.
— Ele veio para fazer a obra do novo mercado — explicava o padre Chico, atendendo a curiosidade dos fiéis enquanto conferia, de longe, se os ventiladores da igreja haviam sido desligados.
— Dizem que ele perguntou se em Novo Oeste não tem uma livraria — atalhou uma das beatas, fazendo olhares e honrando as tradições da cidade.
Em casa, depois da missa, dona Alice vestia colorido, a cozinha era serventia e o jardim uma esperança de brisa; seu Oswaldo tirava a gravata, sentava para ler e suava. Em domingos com futebol do time local, a rotina mudava: a bola tomava o lugar dos livros, o almoço era no restaurante do Celso, lá na beira da estrada e dona Alice, de volta ao lar, sozinha, podia passar o café do jeito que gostava.
Em um certo domingo de futebol e calor ainda mais quente, na esperança do vento, dona Alice abriu a casa, desistiu de seu café e sentou-se no jardim. Na calçada, aparentemente alheio à temperatura, caminhando na direção do sol, inclinado para a frente e com as mãos cruzadas nas costas, resmungando qualquer coisa e perseguindo uma trilha verde de formigas-carregadeiras, vinha Manoelzinho.
Vindo, não viu a dona da casa sentada no jardim. Viu a porta aberta, a parede da sala coberta de livros e parou. Parado, ainda inclinado, de pescoço torcido e olhos arregalados, Manoelzinho emudeceu. Com um misto de encantamento e susto dona Alice levantou e encostou a porta – só para ouvir um upa e ver Manoelzinho, agora inclinado para trás e de mãos cruzadas na barriga, espiando os livros pela janela aberta.
Decidida a ir fechar a janela, a involuntária anfitriã, agora enternecida com o invertido pêndulo humano, viu sua visita voltar à posição original tão logo abriu a porta para entrar na casa:
— Me espere, preciso fechar a janela, mas tenho um pedaço de bolo e uma limonada gelada.
Foi muito tempo depois do fim da obra do novo mercado, já em outros oestes, que dona Alice contou o acontecido para o marido:
— O Manoelzinho não estava mais na frente de casa quando eu cheguei com o lanche. Fiquei triste. Como será que ele se alimentava?
Seu Oswaldo ouviu a história da esposa, deu uma longa tragada, fechou o livro que estava lendo, acarinhou sua capa, deu outra tragada e pensou que tinha respondido.
Vitor Bertini
A esperança na forma de reclame:
Com os votos auditáveis de boas leituras, beijos, queijos e bom fim de semana, saio a procurar meu chapéu.