Os livros do meu pai
#141 “É agosto. Minha vida vai mudar. Sinto isso.”
OS LIVROS DO MEU PAI
Meu nome é Mariana, sou estudante de publicidade e terminei, agora mesmo, a melhor apresentação que fiz em toda a minha vida. Hoje é quarta-feira de um agosto qualquer, acho que são 17:00 e estou muito feliz.
A live foi transmitida aqui de casa, do escritório do meu pai. O nome dele é Sérgio Baker Atkinson de Alencar e o da minha mãe é Lígia.
Foi ela quem me convenceu a usar o escritório. Argumentou que a luz era ótima, a acústica seria boa e as madeiras, quadros e livros comporiam bem como cenário. Aceitei. Depois, foi dela também a tarefa burocrática de conseguir o alvará – há dias que eu andava às turras com meu pai.
Falando nisto, lá está ele, fazendo tempo, esperando o fim da minha ocupação consentida, caminhando no jardim. Aqui de cima, vista da janela do escritório, a vida parece diferente – acho que aplicaram um filtro que elimina ansiedades.
Minha palestra se chama Be Water, e eu tinha certeza que ia dar certo. Comecei com o histórico da fala do Bruce Lee, expliquei o conceito e terminei com alguns exemplos. Funcionou legal.
Só dei uma travada quando o Álvaro, nosso professor, pediu um zoom da prateleira dos livros e começou a ler os títulos em voz alta. A seguir, citando minha própria fala, disse para eu “esvaziar a mente, ser sem forma, ser como a água; me adaptar ao ambiente”, e relacionar o tema com algum dos livros que eu tivesse lido. Os livros do meu pai.
Olhando para o que parecia ser uma biblioteca inteira, de costas para a câmera, eu conseguia ouvir o silêncio da expectativa de todos. Peguei o primeiro livro que a mão alcançou, e corri suas páginas até que algumas linhas sublinhadas em vermelho chamaram minha atenção. Parei ali. Voltei a ficar de frente para a câmera e li em voz alta:
– 68 Contos, Raymond Carver. “É agosto. Minha vida vai mudar. Sinto isso.” – Todos riram, inclusive o Álvaro.
Respirando aliviada, me enchi de coragem: larguei os Contos, retornei à estante e consegui ver um título conhecido: Alice no país das maravilhas. Repeti a folheada até encontrar novas linhas sublinhadas e uma frase manuscrita, com a letra de papai. Voltei à platéia:
“– Por onde devo começar, por favor, Majestade? – Perguntou o Coelho Branco.
“– Comece pelo começo – disse o Rei gravemente – e prossiga até chegar ao fim; então pare.
Fiz a pausa de uma olhada para a câmera e acrescentei a frase rabiscada: “a vida não é assim”.
Diante de novos risos e alguns gritos, improvisei:
– Assim, só o nosso curso.
Fui muito aplaudida e fiquei pensando: é agosto, minha vida vai mudar. Sinto isso.
Vitor Bertini
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Todos os meus personagens choraram esta semana. Inclusive os canalhas.
– Vitor Bertini, 7 de abril de 2023.
Como não chorar?