Os livros do meu pai
#189 Aqui de cima, vista da janela do escritório, a vida parece diferente – acho que aplicaram um filtro que elimina ansiedades.
Detalhes, 8 de março de 2024.
Com razoável frequência me surpreendo pensando no quanto meus textos conseguem seguir à parte da minha vida. Em todos os sentidos.
Hoje, novamente pensando nesta bobagem, descobri que esta dúvida já atormentou gente muito maior. Kafka, por exemplo. Talvez, afinal, não seja uma bobagem tão grande; ou, pelo menos, não uma bobagem só minha.
De qualquer maneira, e tendo escrito o que foi escrito, acredito muito na força dos detalhes. Talvez – e não tem como tocar nestes assuntos sem usar o diabo desta palavra – seja daí o ditado de que “Deus, afinal, mora nos detalhes”. Ou seria o Diabo?
De qualquer sorte, o fato notável é que descobri uma estranha relação entre minha agenda e a ocupação física da minha mesa de trabalho. Elas ficam cheias ou vazias ao mesmo tempo – algo que um dia já chamei de ”relação diretamente proporcional”.
Na impossibilidade de mexer sozinho em uma, resolvi limpar a outra. Resoluto, coloquei no lixo todos as anotações feitas à mão, guardei os lápis, desenterrei pares de óculos e suas caixinhas, levei uma xícara e um copo sujos para a cozinha, recolhi uma caixa de lenços de papel, rasguei duas bulas de remédio e passei um pano para recolher os farelos de bolacha. Vamos ver o que vai acontecer com a agenda.
Enquanto espero a resposta dos compromissos, copio um texto sobre livros. Sempre.
Bom fim de semana.
OS LIVROS DO MEU PAI
Meu nome é Mariana, sou estudante de publicidade e terminei, agora mesmo, a melhor apresentação que fiz em toda a minha vida. Hoje é quarta-feira de um agosto qualquer, acho que são 17:00 e estou muito feliz.
A live foi transmitida aqui de casa, do escritório do meu pai. O nome dele é Sérgio Baker Atkinson de Alencar e o da minha mãe é Lígia.
Foi ela quem me convenceu a usar o escritório. Argumentou que a luz era ótima, a acústica seria boa e as madeiras, quadros e livros comporiam bem como cenário. Aceitei. Depois, foi dela também a tarefa burocrática de conseguir o alvará – há dias que eu andava às turras com meu pai.
Falando nisto, lá está ele, fazendo tempo, esperando o fim da minha ocupação consentida, caminhando no jardim. Aqui de cima, vista da janela do escritório, a vida parece diferente – acho que aplicaram um filtro que elimina ansiedades.
Minha palestra se chama Be Water, e eu tinha certeza que ia dar certo. Comecei com o histórico da fala do Bruce Lee, expliquei o conceito e terminei com alguns exemplos. Funcionou legal.
Só dei uma travada quando o Álvaro, nosso professor, pediu um zoom da prateleira dos livros e começou a ler os títulos em voz alta. A seguir, citando minha própria fala, disse para eu “esvaziar a mente, ser sem forma, ser como a água; me adaptar ao ambiente”, e relacionar o tema com algum dos livros que eu tivesse lido. Os livros do meu pai.
Olhando para o que parecia ser uma biblioteca inteira, de costas para a câmera, eu conseguia ouvir o silêncio da expectativa de todos. Peguei o primeiro livro que a mão alcançou, e corri suas páginas até que algumas linhas sublinhadas em vermelho chamaram minha atenção. Parei ali. Voltei a ficar de frente para a câmera e li em voz alta:
– 68 Contos, Raymond Carver. “É agosto. Minha vida vai mudar. Sinto isso.” – Todos riram, inclusive o Álvaro.
Respirando aliviada, me enchi de coragem: larguei os Contos, retornei à estante e consegui ver um título conhecido: Alice no país das maravilhas. Repeti a folheada até encontrar novas linhas sublinhadas e uma frase manuscrita, com a letra de papai. Voltei à platéia:
“– Por onde devo começar, por favor, Majestade? – Perguntou o Coelho Branco.
“– Comece pelo começo – disse o Rei gravemente – e prossiga até chegar ao fim; então pare.
Fiz a pausa de um ponto e acrescentei a frase que estava rabiscada: “a vida não é assim”.
Diante de novos risos, improvisei:
– Assim, é só nosso curso.
Fui muito aplaudida.
É agosto. Minha vida vai mudar. Sinto isso. Amo meu pai e vou lá em baixo dar um beijo nele.
Vitor Bertini
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Com frequência, é mais seguro estar acorrentado do que ser livre.
— Franz Kafka.