Os cachorros da Gertrudes
#133 Viva, Gertrudes tinha a sabedoria das viúvas.
Faça parte da história do livro, clique aqui, 10 de fevereiro de 2023.
OS CACHORROS DA GERTRUDES
Viva, Gertrudes tinha a sabedoria das viúvas, a voz rouca das fumantes, um vistoso anel no dedo que apontava os céus, incontáveis propriedades, uma família e seis cachorros.
Falecida, ela tinha traje e rosário escolhidos, um inventário, herdeiros, um testamenteiro e uma exigência: durante suas exéquias, Gertrudes deveria poder ver e ser vista pelos seus cães.
– Um velório com a presença da matilha? Sério isso? – Perguntou a neta mais velha, olhos e polegares no celular.
– Mais do que sério, necessário. – Respondeu a mãe, começando a passar um café enquanto ligava para os parentes mais distantes. – Agora, larga esse celular e vai ajudar seu pai nessa história dos cachorros. E não esqueça que foi a mãe dele que faleceu.
– Sim – devolveu a filha, revirando os olhos – minha avó, né? – Resmungou, já em movimento e sem largar o celular.
Diante das tratativas e acordos necessários com a administração da capela, a parte operacional da participação dos cães foi simples: providenciar coleiras, água, comida e transporte. Depois, já no velório, fazer um rodízio de voluntários para zelar pelo comportamento da turma.
Foi só na chegada do testamenteiro que o detalhe do “ver e ser vista” foi lembrado: Gertrudes, deitada, não via e não era vista pelos seis amigos de coleiras que, indóceis, estranhando o ambiente, latiam sem parar.
Até hoje a família disputa a autoria da ideia de ajustar a altura dos cavaletes para que a avó ficasse em um ângulo de 45˚ com relação ao solo.
O que ninguém discute é a disposição dos netos para ficarem de pé, aos pés do caixão, fazendo âncora para que o caixão não escorregasse.
Vitor Bertini
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Este texto é uma ficção. Qualquer semelhança com pessoas, cachorros ou velórios reais é mera coincidência;
O financiamento coletivo do livro dessas histórias pode ser feito até o dia 15 de março. Não percam!
A todos que me encaminharam sugestões para a tarefa de compor o livro, uma palavra: obrigado. De verdade.
A writer is someone for whom writing is more difficult than it is for other people.
―Thomas Mann, Essays of Three Decades
Partido de pressa, me despeço.
Ficam bjs e carinhos sem ter fim, e uma nostalgia espantosa por escrever em português.
Fui.