O Presente de Dona Cilda
#14 O que ele não esperava era ouvir o apelido de sua mãe.
O PRESENTE DE DONA CILDA
– Sua mãe gostou do livro?
– Adorou! – respondeu Germano, sorrindo satisfeito, sem tirar os olhos da carta de vinhos.
– Eu tinha certeza que Dona Cilda ia gostar! – completou Ana Márcia, também sorrindo.
Germano esperava a pergunta. O que ele não esperava era ouvir o apelido de sua mãe.
Arcilda Atti, Dona Cilda para os próximos, mãe de Germano, era uma mulher independente, refinada e culta. A viuvez, havia dez anos, ao contrário do que todos pensavam, apenas reforçara suas individualidades.
– Cuidem de suas vidas. Da minha, cuido eu – declarava solene, com voz calma, sempre que provocada.
Coerente com o que pedia para si, Dona Cilda raramente se manifestava com relação aos haveres dos filhos. Entretanto, aguda observadora da vida, não se furtava de insinuar alguma reflexão sempre que lhe parecia devido e, quando o fazia, usava um método muito peculiar: pedindo presentes.
Coisas para a casa, quadros, vários cursos e até roupas, sempre acompanhados de alguma judiciosa consideração, já haviam sido objeto dos supostos desejos de Dona Cilda. Certa ocasião pediu que Germano, então com um pequeno sobrepeso, lhe desse de presente uma esteira:
– Dessas para se exercitar em casa. Capriche na escolha, e reflita sobre a importância dela para a saúde de sua mãe!
Quando recebeu o pedido para comprar alguns livros, Germano não teve dúvidas: sua mãe achava que ele andava lendo pouco.
– Qual gênero, mamãe? – Perguntou Germano, ouvindo a resposta já na porta do elevador:
– Quem sabe literatura alemã?
E lá se foi o filho para a livraria que mamãe frequentava, rindo sozinho, disposto a comprar alguns livros também para si.
Logo na chegada, intimidado como quem entra em uma casa de vinhos sem saber o significado de varietal, pergunta à primeira atendente a cruzar seu caminho:
– Por favor, literatura alemã?
A atendente volta-se para conferir a direção da cliente com quem falara há instantes e, sem olhar para Germano, aponta:
– Siga aquela moça. Ela está indo pra lá.
Da seção de literatura alemã até a mesa do restaurante foram necessários 40 minutos de conversa para a escolha do livro, um café na própria livraria, um telefonema e três dias.
Agora, depois de ouvir aquele “Dona Cilda”, apesar de encantado com a companhia, Germano achava que mamãe tinha ido longe demais. Um pouco zonzo, com um sorriso preso, ele retoma um pedaço de diálogo qualquer, tentando ganhar tempo e chão:
– Quer dizer que a literatura alemã já tem 14 prêmios Nobel?
– É a segunda mais premiada, junto com a francesa. Países de língua inglesa já somam 30… – começou Ana Márcia.
No silêncio de Germano, autores e obras alemãs começaram seu desfile:
– Thomas Mann… Gunter Grass… A Montanha Mágica… O Tambor… Às vezes as pessoas nem sabem que são obras de autores alemães… O Perfume… O Lobo da Estepe, do Hesse…
Alguns parágrafos mais tarde e Ana Márcia fez uma pausa. Tomou um gole de água, respirou e, sem entender o silêncio e o distanciamento de seu novo amigo, prosseguiu, agora insinuando sua situação:
– Até no Diabo eles são especialistas. Começou com Goethe, passou por Thomas Mann, deu um pulo na Dinamarca com Kierkegaard, e terminou em uma mesa de restaurante no Brasil. Você é fogo…
Voltando de seus pensamentos, Germano, que não tinha ouvido nada sobre os alemães e seus textos, instintivamente seguiu o verso da última e única frase que captara:
– Eu sou paixão.
Desconfiada, Ana márcia, arriscou continuar:
– Você é luz, é raio estrela e luar.
– Manhã de sol, meu iaiá, meu ioiô – cantarolou Germano, iluminando o rosto.
– Wanderley Alves dos Reis! – exclamou ela.
– Wando! – completou ele, gargalhando e segurando, pela primeira vez, a mão de sua convidada.
Somente no fim do vinho, Germano teve coragem para recriminar a dupla e dizer que não era bobo - que sabia da combina entre ela e sua mãe. Mas, confessava, estava achando tudo uma maravilha.
Sorrindo, algo encabulada, Ana Márcia esclareceu que só sabia o apelido porque, ainda no café da livraria, enquanto Germano ia ao banheiro, havia bisbilhotado e lido a dedicatória: “Pra minha amada mãe, Dona Cilda”.
Germano corou e, rindo alto, comandou mais uma garrafa de vinho. Depois, juntos, cantaram músicas do Wando até fechar o restaurante.
Vitor Bertini