O nascimento de Alma Lima
#212 Como todo afilhado, Alma usa botões que Fradique não usava.
Oitavo Círculo, 09 de agosto de 2024
O texto ia bem, Alma Lima havia nascido e começava a ser:
Entre uma livraria e outra, na rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro, apresentado por uma amiga em comum, conheci Alma Lima.
O telefone tocou: Irene não está bem. Perdoem.
IRENE
Uma parede branca, uma máscara branca, uma cadeira de rodas, olhos cansados fugindo da foto e um cobertor nas costas. No colo da Irene, sobre outro cobertor, um celular velho e um pequeno embrulho de padaria.
A parede branca é de azulejos e tem um corrimão de aço acompanhando seu comprimento. Os braços da cadeira denunciam sua idade, os da Irene ostentam duas agulhas de borboletas azuis pousadas sobre um esparadrapo branco. Quem conta sobre seu tempo e sua vida são suas mãos fechadas, cruzadas sobre o colo.
Às suas costas, de costas, formando um involuntário par, um laço de jaleco branco veste quem tem cabelos grisalhos e sorte parecida com a sua. Outras duplas acompanham o corrimão até onde alcança a vista – ou o foco. Até o fim dos tempos.
Na imagem, anjos vestidos de azul carregam pranchetas e parecem anotar preces.
Conta a história que Irene, sete horas depois daquela foto, espantou as borboletas, renunciou aos benefícios do aparato que prometia saúde, pediu emprestado um braço de apoio, levantou a cabeça ao passar pela porta de saída, chamou um táxi e foi para casa.
Sentada na banqueta da cozinha, acompanhada da dona da mão que a havia fotografado, suspirou e pediu um cigarro. Diante do silêncio, abriu o embrulho da padaria e comeu os dois pães de queijo. Frios.
Vitor Bertini
Alma Lima nasceu tendo por padrinho de letras o personagem Fradique Mendes:
Tu fundas, com o teu novo jornal, uma nova escola de intolerância. Em torno de ti, do teu partido, dos teus amigos, ergues um muro de pedra miúda e bem-cimentada; dentro desse murozinho, onde plantas a tua bandeirola com o costumado lema de “imparcialidade, desinteresse, etc.”, só haverá, segundo Bento e seu jornal, inteligência, dignidade, saber, energia, civismo; para além desse muro só haverá necessariamente sandice, vileza, inércia, egoísmo, traficância! É a disciplina do partido (e, para te agradar, entendo partido, no seu sentido mais amplo, abrangendo a literatura, a filosofia etc.) que te impõe fatalmente esta divertida separação das virtudes e dos vícios.
– A correspondência de Fradique Mendes, XV, Eça de Queiroz
Como todo afilhado, Alma usa botões que Fradique não usava:
Para quem procura o valor de X, a resposta é @vitorbertini
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