O ministro
#174 O pântano, destaque no discurso real, sempre estivera ali. Obra de Deus.
Saparia, 24 de novembro de 2023.
Carlinhos entrou em casa pela porta dos fundos, passou pela churrasqueira e seus vasos com poucas flores, largou a mochila na cadeira ao lado do tanque e lavou as mãos com sabão. Depois, nos passos para a cozinha, passando pelo varal improvisado entre a chaminé e uma janela basculante, secou as mãos em um pano de prato.
O texto ia bem, a ideia central estava posta e o café não tinha esfriado. Abri um sorriso, afastei a cadeira e fui até a janela do nosso dia a dia. Não devia. O barulho dos sapos estava excessivo. Mudei o texto.
Carlinhos voltará.
O MINISTRO
Nos fundos do castelo onde morava a princesa, havia um pântano e um caminho.
O caminho, sinuoso na forma e construído com as melhores pedras, havia sido inaugurado com pompa e circunstância pelo rei – sempre atento aos desejos da filha –, devidamente acompanhado de sua corte e por alguns poucos magistrados, escolhidos a dedo. O pântano, destaque no discurso real, sempre estivera ali. Obra de Deus.
A construção de um caminho dentro do pântano fora ideia assoprada pela dama de companhia da princesa, cansada que estava de limpar as barras dos longos vestidos de sua senhora. Seu traçado, objeto de discretos comentários, marcava os locais dos ninhos das aranhas mergulhadoras – essas fascinantes e silenciosas criaturas de oito pernas, capazes de construir densas teias submersas cheias de ar. Os interesses da filha do rei eram assuntos conhecidos na corte.
Certo fim de tarde, sem mais o que fazer na aborrecida vida palaciana, lá se foi nossa princesa ao pântano para mais uma solitária caminhada de sonhos e reflexões.
E foi naquele dia, depois da curva onde ficava o terceiro ninho, na área do grande charco, que ela começou a repartir suas atenções:
– Pst, pst, princesa! Princesa!
– Meu Deus, meu Deus! Um sapo que fala! Que coisa fascinante.
– Não… Perdoa-me, mas, não sou sou um sapo que fala.
– Não?
– Não. Parece, mas não sou.
– Ainda acho que és um sapo que fala.
– Sim, não. Me explico: não sou um sapo. Sou ministro da Suprema Corte do Reino. Aliás, não sou um simples ministro. Sou o melhor dos ministros. Tão bom que o senhor vosso pai, nosso Rei, me honrou com o convite para a inauguração deste bom caminho que pisa Vossa Alteza nesse momento.
– Lembro da solenidade; não lembro de sapos.
– Eu também não lembro de sapos. Vim como ministro, como magistrado. Continuo a minha explicação: sou um grande ministro, sei tudo, uso capa, canto, danço, dou entrevistas, palestras e até faço leis. Tão bom que os outros magistrados – sem falar na oposição a vosso pai –, por inveja, me rogaram esta praga. Virei um sapo.
– Interessante.
– Trágico, isso sim.
– Como?
– Me perdoe, princesa. Achei que estivesse junto aos meus pares. Perdoe a linguagem desse súdito.
– A realeza é admirada pelo bem que podemos fazer. Pelo mal, somos temidos. Sapo, estás perdoado.
– Perdão, Vossa Alteza Real, mais uma vez, com humildade, peço perdão. Entretanto, data vênia, realmente não sou um sapo. Estudei a jurisprudência de nosso Reino. Não restam interpretações: um beijo de uma princesa e a maldição será desfeita. As princesas de outros reinos me são tão impossíveis quanto a filha de meu rei. A diferença é a distância e a minha disposição de ser seu magistrado para sempre. Um beijo de Vossa Alteza e volto a ser ministro. Agora, mais do que antes, para sempre, ao seu dispor.
Esquecida das aranhas, espantada como o primeiro filósofo, ao som de coaxares que nunca havia reparado, a princesa não tardou a comandar:
– Já disse o Bardo que “entre dois beijos abrimos mão de reinos e províncias”. Me pedes um. Vou pensar. Voltemos para o castelo.
E lá se foi o sapo atrás da princesa, ao saltos, eufórico com a volta à corte. Orgulhoso, ele havia conseguido superar a atenção de Sua Alteza para com as aranhas.
Tempo depois, incrédulo com a demora do beijo transformador, cansado dos aposentos reservados da princesa, senhor dos seus recursos retóricos, depois de mais um baile real, na volta de sua senhora ao quarto de dormir, o sapo que não coaxava, tendo perdido a paciência, encontrou coragem:
– Princesa, o poder de um beijo real! – Discursou o ministro, fechando com uma de suas pernas verdes o livro que fingia ler.
– Boa lembrança, meu amigo. Acho que estou lhe devendo uma resposta. – Afirmou a princesa, enquanto tirava os sapatos. – Vamos ver se entendi direito: primeiro, você não é um sapo, você é um ministro da nossa Suprema Corte; segundo, por inveja seus pares lhe rogaram uma praga; terceiro, com um beijo meu o sapo volta a ser ministro, agora à minha inteira disposição. Em resumo é isso, não? – Perguntou, começando a desfazer o cabelo.
– Isso, saltou o sapo. Este é o poder de um beijo real! – Concluiu, quase sorrindo.
– Pois é, estive pensando. Me diga uma coisa: para que eu preciso de um ministro da Suprema Corte se eu tenho um sapo que fala?
Vitor bertini
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Para você ver como são as coisas. Estou lendo, no meio de outros tantos, um livro chamado Power Plays - Shakespeare’s Lessons in Leadership Management, John Whtney and Tina Packer. Material subsidiário para minhas palestras.
É a única explicação para a frase sobre o beijo que a princesa achou por bem responder. Gostei.
Alguém viu meu chapéu?