O canto da sereia
#134 Doutor, o que atrasa o progresso é a tortura da parede.
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O CANTO DA SEREIA
No verão, Mário morava sozinho na cidade, pintava paredes, cometia versos e bebia; no inverno, morava na praia.
Na praia, pintava paredes, cometia versos, bebia e, à tardinha, fazia esculturas de areia à beira-mar.
– Doutor, o que atrasa o progresso é a tortura da parede – sentenciava com um olhar morno, sempre que precisava justificar um pedido de mais tinta ou uma mudança de data na entrega dos serviços. Quando havia alguma insinuação ou queixa envolvendo a hipótese da bebida, Mário zombava, abusando da frase de Frida Kahlo:
– Eu nunca pinto sonhos ou pesadelos. Pinto a minha realidade.
Mário não lembrava quando havia começado a beber. Lembrava do pai: viúvo desde sempre, capataz de uma arrozeira, leitor voraz, exímio pescador de “caniço e rolha” e, todos os sagrados verões, veranista em alguma praia, em alguma casa de aluguel acessível e paredes descascadas. Lembrava também de sua prematura morte, assassinado com dois tiros em circunstâncias nunca esclarecidas, em um passeio noturno à beira da praia. Um dos tiros havia perfurado a sereia tatuada acima da enigmática frase “alguns sobrevivem”, no lado esquerdo do peito.
No verão seguinte ao assassinato do pai, Mário ficou na cidade; no inverno, foi à praia. Em uma casa de aluguel acessível, em uma mesa velha, ele instalou uma máquina de escrever e começou, alternadamente, a fazer versos e pintar paredes. Foi na solidão das caminhadas à tardinha que ele começou a fazer esculturas de areia; só para encontrá-las destruídas no outro dia pela manhã.
A alternância das estações, a inconstância do estilo dos versos e as infinitas paredes - “cada uma é diferente da outra” –, contrastavam com a rotina das esculturas: a areia moldada terminava sempre em uma sereia de olhos fechados que seria destruída pela ação do mar, dos ventos e dos quase humanos, antes do alvorecer. Na manhã seguinte, depois de confirmar a destruição de sua obra, ao contrário de Frida, acompanhado de versos com seus sonhos e pesadelos, ia para o bar.
Esta rotina durou o tempo do cansaço das memórias de Mário. Seguiu até a manhã em que sua vista viu o que a cabeça, ainda zonza da noite, custava a crer: a sereia esculpida na véspera não fora destruída, estava intacta, de olhos abertos e parecia cantar.
Espantado, Mário voltou para casa. Rejeitou a máquina de escrever, deitou, dormiu e sonhou com o pai. No sonho, o capataz da arrozeira, sorrindo, apontando a frase tatuada em seu peito, repetia indefinidamente: “alguns sobrevivem, alguns sobrevivem”.
O verão seguinte encontrou Mário morando na praia - fazendo versos, pintando quadros e bebendo. Mário sobreviveu.
Vitor Bertini
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Conheço o Mário, personagem da história de hoje, e conheci seu pai. Chegamos a pescar juntos algumas vezes.
Entretanto, devo confessar, nunca comentei nem pedi permissão para narrar os fatos que testemunhei. Coisas de escritor.
Agora, quando tomo a liberdade de especular sobre certas razões ou circunstâncias e assim preencher as lacunas que a história insinua, ofereço, de boa vontade, o espaço necessário para eventuais correções ou esclarecimentos. Se for o caso, serão as verdades do Mário.
Contrário senso, essa é a minha história: