O beijo do Nelson
#176 – “Jogo, logo sou.” – Afirmou, elevando seu cálice.
Maracanã, 8 de dezembro de 2023.
O BEIJO DO NELSON
Carlinhos entrou em casa pela porta dos fundos, passou pela churrasqueira e seus vasos com poucas flores, largou a mochila na cadeira ao lado do tanque e lavou as mãos com sabão. Depois, nos passos para a cozinha, passando pelo varal improvisado entre a chaminé e uma janela basculante, secou as mãos em um pano de prato.
Na cozinha, sempre limpa quando Maria saía, uma janela grande iluminava uma pia de duas cubas, um fogão com tampa abaixada, um refrigerador, um balcão de fórmica, quatro cadeiras contra a parede à direita e uma velha mesa de madeira maciça.
Carlinhos já estava na cozinha e o ritual do café estava por começar quando Eduardo chegou.
Eduardo é uruguaio, jogador de futebol aposentado e um grande leitor. Começou jogando na meia esquerda e terminou seus dias – coisas da idade – jogando de centro-médio. Aprendeu jogando. Com graça, diz que ler é viver.
Como sempre, chegou sem fazer cerimônias, abriu um vinho, sentou-se na poltrona da sala, apontou para o sofá com um gesto de cabeça e para a televisão com um controle remoto, zerou seu volume e começou a falar.
– “Jogo, logo sou.” – Afirmou, elevando seu cálice.
Depois, entre goles, seguiu defendendo sua antiga profissão:
– “A história oficial ignora o futebol. Existe aí um vazio assombroso. Os textos de história contemporânea não mencionam, nem de passagem, em países onde o futebol foi e continua sendo um símbolo primordial de identidade coletiva, sua existência.”
Anfitrião acidental, levantei da poltrona e fui buscar um queijo. Na volta, conhecendo seus gostos, lembrei trechos de Nelson Rodrigues, sua paixão pelo Fluminense e sua bem sucedida dança da cultura de par com nosso futebol. Eduardo abriu um sorriso:
– “O Nelson tinha cara de sapo e língua de serpente, e a seu prestígio de feio e sua fama de venenoso somava-se a notoriedade de seu contagioso azar: as pessoas ao seu redor morriam de tiro, miséria ou infelicidade fatal.”
Na sua eloquência, calei. Ele não:
– “Certo dia, Nelson conheceu Eleonora. Naquele dia, dia do descobrimento, quando pela primeira vez viu aquela mulher, uma violenta alegria atropelou-o e deixou-o abobado.
Então, quis dizer alguma de suas frases brilhantes, mas as pernas bambearam e a língua se enrolou e não conseguiu outra coisa a não ser gaguejar ruidinhos.
Bombardeou-a de flores. Mandava flores para o apartamento dela, no alto de um edifício do Rio de Janeiro.
A cada dia mandava um grande ramo de flores, flores sempre diferentes, sem repetir jamais as cores ou aromas, e ficava esperando lá embaixo: lá de baixo via a varanda de Eleonora, e da varanda ela atirava as flores na rua, todos os dias, e os automóveis as esmagavam.
E foi assim durante cinqüenta dias. Até que um dia, um meio-dia, as flores que Nelson enviou não caíram na rua e não foram pisadas pelos automóveis.
Naquele meio-dia, ele subiu até o último andar, apertou a campainha e a porta se abriu.” – Concluiu, inclinando-se para me servir outro cálice de vinho.
Enquanto eu aplaudia suas Flores, Eduardo voltou-se para a televisão e aumentou seu volume.
Na tela, como mágica, vinte e dois personagens dançavam ao redor de um Nelson Rodrigues que, embevecido, de olhos rútilos, girava e aplaudia. Surpreso, talvez tonto, vi a sombra de Eduardo sair da poltrona e confundir-se com as imagens. Da cozinha onde o Carlinhos deveria estar, respondendo aos loucos gritos de quem argumentava ser imortal, Eduardo gritou para que eu ouvisse:
– “Somos todos mortais até o primeiro beijo e a segunda taça de vinho”.
A seguir, não mais na tela, mas na minha sala, de volta da cozinha do Carlinhos, Eduardo Galeano correu para abraçar outro uruguaio e consolar seu amigo escritor, também aos gritos:
– Nelson, beije o Luizito. Beije, Nelson!
Acordei, desliguei a TV, larguei o Futebol ao sol e à sombra sobre a mesa, tomei o último gole do vinho e fui deitar. No caminho do quarto, no lado de fora da casa, Nelson Rodrigues, chorando lágrimas de esguicho pelo seu Fluminense, beijava o rosto de Luizito Suárez.
Carlinhos voltará.
Vitor Bertini
“E dando o ato por findo”, despeço-me.