MAL ESTAR
Acordei de mau humor.
Calado sentei na mesa de sempre.
Depois de inúteis olhadas ao redor e diante de uma nova atendente, por escrito, perguntei por Esmeralda:
— Esmeralda?
— Mal humor?!
Levantei e fui embora.
Agora, tenho mau humor e fome.
AO LEITOR
Elegante seria começar essa apresentação louvando as histórias escritas por Raymond Carver, Chekhov, Babel, ou mesmo as insuspeitas cartas de van Gogh a seu irmão Théo. Entretanto, quis antes o destino que eu acolhesse um conselho e uma prática ditados por um finado: Brás Cubas.
É dele o conselho para que os prólogos sejam curtos ou ditos de um jeito obscuro e truncado. É dele também a prática de buscar argumentos em outros autores; ele cita Stendhal, eu busco suas memórias póstumas.
Na verdade, também recolho do morto o destemor pelas confissões, esta estranha prática favorecida pela distância, pelo tempo, pela intimidade ou pela esperança do perdão: estas histórias sem estilo definido, filhas de um tempo em que ninguém tem tempo, quase todas feitas e espalhadas aos ventos das sextas-feiras foram escritas sem método e sem dono, só com as tintas do espanto. Perdão.
No seus conteúdos, prudente, fugi das tramas conhecidas e das pessoas que pagam impostos; imprudente, não lembrei que a vida tenta, com todas as suas forças, assemelhar-se a uma história bem contada. Este prólogo, por exemplo, começou a ser escrito com um olho nos improváveis conselhos do além, enquanto a outra vista, boba, dançando sobre as águas, foi buscar abrigo em ilhas de confissões, presumidamente reais.
E é assim, caro leitor, de mãos dadas com o imponderável, ouvindo vozes, cadenciando o passo e espremendo os olhos na direção de quem vem lá que lhe dou as boas-vindas que posso: escrever é bom; ser lido é melhor.
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Este Ao leitor é o prólogo do livro A Profeflor, imperdível no link a seguir:
Glossário desta edição:
Glossário: conjunto de termos de uma área do conhecimento e seus significados; vocabulário.
Mal estar: forma errada de escrever mal-estar; título de uma assombrosa história curtíssima do escritor brasileiro Vitor Bertini.
Reclame: do francês réclame, derivado de réclamer (“chamar de volta, atrair a atenção”); derivação regressiva do verbo reclamar, do latim reclamare, que significa "gritar contra", "protestar”. O texto Ao leitor, hoje, é um reclame.
Reclamar: pedir algo com insistência; protestar; como regra, um exercício inútil.
Carver, Raymond (1938–1988): escritor e contista norte-americano, mestre do realismo sujo e da concisão. Escreveu sobre gente comum em situações silenciosamente devastadoras. Seus contos são curtos, secos e intensos.
Tchékhov, Anton (1860-1904): médico, dramaturgo e contista russo. Revolucionou o conto ao mostrar que a vida não precisa de finais espetaculares para ser literatura.
Bábel, Isaac (1894-1940): escritor russo. Escreveu sobre guerra, revolução e vida urbana com brutalidade poética. Seus textos curtos misturam lirismo e violência. Assassinado pela polícia stalinista.
Stendhal (1783-1842): pseudônimo de Henri Beyle, escritor francês. Mestre do romance psicológico e da ironia elegante.
Cubas, Brás: filho do escritor brasileiro Machado de Assis; veio do além para fundar a Academia Brasileira de Letras, viu no que deu — e voltou.
Mau: oposto de bom. Usado para qualificar algo ou alguém negativo, desagradável ou de má índole. Diferente de mal, que é o oposto de bem.
Fui: uma das formas de despedida do escritor Vitor Bertini; forma rude de dizer até breve. O mesmo que alguém viu meu chapéu?
Outono de 2025.