Lanche ajantarado
#163 Valdemar disse ”então”, mais não disse, e começou a montar um sanduíche.
Afeto e Memória, 8 de setembro de 2023.
Dois amigos conversavam sobre gostos e preferências culinárias:
– Dentre todos meus gostos, gosto mesmo é de ovos. Chego a ter um certo afeto por eles – dizia um deles, quando uma grande explosão interrompeu a conversa e fez com que cada um tomasse seu rumo.
Muito tempo depois, ao acaso, reencontraram-se:
– Mas como? – Braços abertos, comemorou o primeiro a falar.
– Fritos! – Respondeu o que tinha afeto pelos ovos e boa memória.
LANCHE AJANTARADO
Valdemar disse ”então”, mais não disse, e começou a montar um sanduíche.
– Diga, Valdemar.
– Diga?
– Valdemar, você nunca diz ”então” para ficar calado. Digamos que eu conheça meu eleitorado.
– Então… – repetiu Valdemar, já de boca cheia, levantando da mesa.
Jurema esboçou um sorriso, desviou o olhar para o relógio bobo do microondas, acompanhou os passos do marido pelo reflexo na porta da adega e começou a servir-se.
O jantar, servido na copa, de jantar só tinha o nome e o horário de início, 20h30 – cada membro da família montava seu lanche com as opções trazidas à mesa . Depois, quando o terceiro prato estava lavado, a família havia jantado.
No caminho da cozinha, ainda mastigando, e antes que a esposa mudasse de humor, Valdemar retomou seu assunto:
– Marisa não vem jantar? – Perguntou, terminando de engolir e servindo-se, direto do misturador da pia, um copo com água.
– Água da torneira, Valdemar?
– O que é que tem?
– Tem água servida aqui na mesa, Valdemar. Ninguém nesta casa bebe água da torneira. Nem você. O que é que há?
Valdemar devolveu a água à pia, o copo ao balcão, tomou o rumo de volta à mesa e não sentou.
– Você já falou com nossa filha?
– Como assim? Falo com a Mari todos os dias. Que história é essa? E quer fazer o favor de parar de caminhar feito uma barata tonta? Senta, por favor.
Com os olhos Jurema conduziu o marido até a cadeira, respirou fundo e concluiu:
– Com relação ao jantar, mandei uma mensagem e ela ainda não viu. Deve estar com as amigas. Não me falou nada sobre não comer em casa.
Depois, suspirou, arrematando:
– Mas, não é sobre o jantar da Mari que você quer falar, certo?
Foi outro olhar da esposa que fez com que Valdemar desistisse de dar uma nova mordida no sanduíche:
– Ela está ficando moça. Acho que você deveria falar com ela.
– Sobre?
– Essas coisas de mulher. Cuidados com relação ao sexo. Os meninos, os perigos de doença, gravidez… sei lá… não sei como dizer, mas sei bem com o que me preocupo.
– Pois é… também me preocupa um pouco… Mas, vou ser sincera: por incrível que pareça, também não sei bem como falar. Mamãe nunca falou nada comigo…
– Ju, os tempos são outros. Agora, você é a mãe. Você é mulher e sabe que os tempos são outros. Eu é que não vou falar. Mas, alguém precisa falar. Logo…
Naquela noite, o último prato do jantar, o da adolescente filha Marisa, a Mari das preocupações, foi lavado às 23h30.
Meses depois, em outro lanche ajantarado, quando novamente só o casal bebia a água que estava à mesa, Jurema voltou às falas:
– Valdemar, falei com a Mari.
– Sobre? – Perguntou Valdemar, distraído, mordendo seu sanduíche.
– Fritos, Valdemar, fritos!
– Sobre sexo? – Exclamou o marido, quase se engasgando.
– Então…
– Muito bem! Muito bem! E o que ela disse?
– Disse que eu preciso me atualizar.
Vitor Bertini
Cada um é filho das suas obras.
– Don Quixote, Parte 1, Capítulo 47 - Miguel de Cervantes
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Nenhuma filosofia, nenhuma análise, nenhum aforismo, por mais profundos que sejam, podem se comparar em intensidade e riqueza de sentidos a uma história contada adequadamente.
– Hannah Arendt
Já é tarde, preciso ir. Chove lá fora?
Pois é isso mesmo, amigo de verdade é aquele que você raramente encontra, mas quando encontra é como se nem se houvessem separados.
É pena que eu não tenha muitos amigos para conversar, muito menos para compartilhar este blog que há de me ser muito útil, espero lembrar de vista-lo com frequência.