Vila de Figueres, 29 de abril de 2022.
Olá.
Sou prisioneiro de uma entrevista que me liberta. O entrevistado era o escritor Érico Veríssimo e ele contava da possível relação entre a fala nordestina e o tipo de cardápio servido naquela região brasileira, em contraste com seus conterrâneos do sul.
A culinária da parte de cima do Brasil, dizia ele, mais pastosa, de ricas paçocas e ensopados de nomes suculentos, ensejaria um falar arrastado e calmo, enquanto o carnívoro da parte de baixo deste imenso país praticaria uma fala mais cortada e incisiva – derivada da necessidade de uma mastigação também mais cortada e incisiva.
Diante da surpresa do entrevistador e da pergunta sobre a origem da tese, Érico, com o olhar matreiro de quem comia carne, falava cortado, mas ponderava com vagar, ensinou:
– Meu filho, sou um contador de histórias.
Livre para pensar, falar e escrever, jamais esqueci esta resposta. Só não lembro quando ouvi a entrevista – ou escrevi.
Entre ficções sérias e realidade nem tanto, goles e beijos, boa leitura e bom fim de semana.
JORNALISTA O TEMPO TODO
LM era meu amigo e jornalista o tempo todo. Um clássico.
No tempo dos clássicos, o ar da redação tinha fumaça de cigarro, o teclar das máquinas de escrever era música de fundo, os paletós ficavam nas cadeiras, noite era dia, os fotógrafos estavam sempre indisponíveis e o café era ruim. Na redação, LM sentia-se em casa.
Na rua, elegante, cabelo em desalinho combinando com o nó da gravata, experiente e discreto, ele sabia ouvir e a quem procurar.
Depois, bem informado, na volta ao jornal, as necessárias conversas, o café no bar, as horas passando, alguns cigarros e dois dedos ágeis entregavam uma coluna política de texto limpo e conteúdo instigante, no último momento possível.
Fechada a edição, aberta a noite: LM saia para jantar, beber, cantar e dançar, todos os dias da semana. Tinha amigos, sonhos, echarpes, chapéus, um automóvel Simca Chambord e uma namorada. Na redação, meu amigo estava em casa. Em casa, ele não tinha hora para chegar.
Certa madrugada de hora incerta, contrariando os costumes, encontrou a porta de seu apartamento entreaberta e a esposa de uma vida, sentada na sala. A adrenalina trouxe a sobriedade. Calou, sentou e ouviu.
– Você tem uma namorada; sei seu nome, seu endereço e tenho as datas e os horários de suas visitas e encontros. Nós vamos nos separar e eu não quero nada. Só tenho uma exigência: quero um jantar na companhia de vocês. Nós três. Quero conhecê-la. Marque e me avise. Suas roupas estão nas malas, e as malas no quarto de hóspedes. Sem o jantar, voltaremos a sentar aqui.
Durante uma semana LM dormiu em um hotel do centro da cidade e pensou na vida.
Reservou uma mesa em um restaurante o mais afastado possível de seu circuito habitual – ou de suas fontes – e no último horário disponível.
A viagem de ida foi repleta de sorrisos e o jantar recheado de amenidades e gentilezas recíprocas. O único momento mais tenso foi quando a agora ex perguntou à nova titular:
– Você conhece bem ele? Sabe com quem vai ficar? Eu, fosse você, e na sua idade, não abraçava esta bronca. Mas, sei como é. Já passei por isto. Seja feliz.
Tarde da noite, restaurante vazio, a conta e o Simca no estacionamento. Sem bateria. Nenhuma das mulheres presentes sabia dirigir ou ousou tentar a manobra.
Sentado na direção, vidro do motorista aberto, braço apoiado na porta, segunda marcha engatada, pé na embreagem, a ex e a atual empurrando, e LM só conseguia pensar na dificuldade de conseguir um fotógrafo quando eles eram mais necessários.
LM era jornalista o tempo todo.
Vitor Bertini
TAKE A PEEK
“Insisto expressamente em fazer esta comunicação em Paris porque a França é o país mais inteligente do mundo, o país mais racional do mundo, enquanto eu, Salvador Dalí, venho da Espanha, que é o país mais irracional do mundo1.
Todos sabem que a inteligência nos faz desembocar apenas nas névoas do ceticismo, que ela tem por efeito principal reduzir-nos a coeficientes de uma incerteza gastronômica e supergelatinosa, proustiana e malsã. Por esta razão é bom e necessário que, de vez em quando, espanhóis como Picasso e eu venhamos a Paris para vos deslumbrar, pondo diante de vosso olhos uma porção crua e sangrenta de verdade…”
Foi por estas palavras que comecei minha já celebérrima conferência na Sorbonne em 16 de dezembro de 1955, e é exatamente da mesma maneira que quero começar este libelo em que cada nova linha está em via de tornar-se clássica, nem que seja pelos rangidos do papel no qual escrevo.
O golpe de calcanhar categórico de minha pena escande como uma perna esquerda o zapateado2 mais altivo, o zapateado das mandíbulas de meu cérebro!
Olé!
– Libelo contra a arte moderna, Salvador Dalí, L&PM Pocket, julho de 2008
Tudo ficção, sem reclames. Eventuais coincidências, são só coincidências;
Estas histórias vão virar um livro. Sugestões?
Passado e futuro de graça, cobraremos pelo presente.
Em 1952, Dalí escrevia: “O papel do meu país é essencial no grande movimento de “mística nucelar”, que deve marcar nosso tempo. A França terá um papel didático. Ela redigirá provavelmente a ata “constitutiva” do misticismo nuclear graças às proezas de sua inteligência, porém uma vez mais será a missão da Espanha enobrecer tudo pela fé religiosa e pela beleza.”
O dançarino espanhol ritma sua dança com golpes secos de calcanhar e batidas de pés nas quais Dalí reconhece as marteladas de seu pensamento.