Vitor Bertini
A história da sexta
Humanos
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Humanos

#64 Acordei com as costas intactas. Novinhas em folha. Nenhum incômodo.

Olá.

Hoje, um pouco nostálgico, lembrei de Bénya Krik, o Rei. Bénya, para quem não sabe ou não lembra, é o cão herói de “Não me Abandone”, meu livro.

Você já começou a pensar em presentes de Natal? Então…

Entre comerciais, livros, goles e beijos, boa leitura e bom fim de semana.


HUMANOS

Hoje acordei com uma estranha sensação nas costas e, ao contrário de Gregor Samsa, aquele personagem do Kafka que acorda parecido com uma barata gigante e termina confinado em seu próprio quarto, me levaram a passear. Que cansaço.

Perdoem começar assim, com queixas. Deve ser a idade.

Aliás, inicialmente achei que o tal incômodo nas costas fosse apenas mais um item da generosa lista de regalos del tiempo: dores generalizadas, tédio abrangente e, nas horas mais improváveis, um sono invencível.

Depois do passeio - parque com pombos insolentes, vitrines aborrecidas, cãezinhos com ânimo excessivo, gramados irregulares, infinitos caminhos de terra e a minha firme recusa em buscar pedaços de pau jogados ao longe, o lanche foi bom e a sesta reparadora. Bendito sono.

Acordei com as costas intactas. Novinhas em folha. Nenhum incômodo. 

Entretanto, nada de calma. A seguir - eu ainda me espreguiçando, fui literalmente arrastado para a frente da televisão da sala de estar, no centro de uma constelação familiar. Todos presentes. 

Já esquecido das costas e do medo da morte - coisas de velho, ganhei pipocas, meu cobertor favorito, muitos olhares e, confesso, achei tudo aquilo muito estranho. Conheço a minha gente.

As coisas ficaram ainda mais estranhas quando percebi que eu já tinha visto aquele filme. Reconheci cada tormentoso pedaço do meu passeio matinal.

Enquanto todos buscavam minhas reações ao ver as cenas, humanos, não perceberam meu reflexo na primeira vitrine, na loja de calçados femininos, carregando, montada nas minhas costas, uma filmadora. O meu pequeno incômodo.

Inocentes, não só não viram o reflexo, com também não viram que são eles os objetos de minhas atenções, jamais os meus caminhos. Mesmo velho e rabugento, só tenho olhos para eles.

Estranhos esses humanos, muito estranhos. 

Vitor Bertini

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  • Alguma dúvida sobre ser ficção?

  • Sexta, dia 22 de outubro, tem mais;

  • Mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão vermelho perdido por aí.


RESENHAS INSÓLITAS

Lolita, Vladimir Nabokov.

Sem julgamentos: Humbert Humbert, o personagem narrador da história, é estrangeiro nos USA, anarquista e tarado; Lolita, uma ninfeta, é sua paixão. Esta é a história.

Um ponto interessante é o fato da classificação bibliográfica do livro ser “romance norte-americano”. 

Nabokov escreveu Lolita em inglês e, apesar de declarar que esse talvez fosse seu caso de amor com a língua inglesa, lamentou com a força de uma “tragédia pessoal” o abandono de seu idioma natural e as possibilidades e nuances que este lhe oferecia.

Quanto à leitura propriamente dita, aqui vão breves e despretensiosas orientações de uso: 

  • Leia duas vezes o prefácio assinado por John Ray. É bom e vai ajudar;

  • Leia com vagar. Cuide com as expectativas criadas no primeiro terço da história;

  • Vista as roupas de Humbert Humbert ou qualquer um dos seus nomes e siga os próximos dois terços do livro. Nabokov sabe sobre as expectativas criadas e escreveu sobre isso;

  • Quando você chegar nos capítulos 35 e 36 sua vida não será mais a mesma;

  • Tempos depois, leia o livro de novo.

Comprei minha edição no Sebo Itaim, Rua Clodomiro Amazonas, 112, em São Paulo, ao valor de 2F. Cada F vale R$ 5,00.

Reproduzo um trecho do posfácio “Sobre um livro intitulado Lolita”, escrito pelo autor. Valeria, sozinho, outros 2F.

Não escrevo nem leio obras de ficção com fins didáticos, e, a despeito da afirmação de John Ray, Lolita não traz nenhuma moral a reboque. Para mim, um romance só existe na medida em que me proporciona o que chamarei de volúpia estética, isto é, um estado de espírito ligado, não sei como nem onde, a outros estados de espírito em que a arte constitui a norma.”

– Não percam!

PS: Vladimir Nabokov e sua esposa eram caçadores de borboletas. Grande parte do livro foi escrito à noite ou em dias nublados, pouco adequados à caça.

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