Dia simples, 27 de outubro de 2023.
HUMANOS
Hoje acordei com uma estranha sensação nas costas e, ao contrário de Gregor Samsa, aquele personagem do Kafka que acorda transformado em uma espécie de barata gigante e termina confinado em seu próprio quarto, me levaram a passear. Que cansaço.
Perdoem começar assim, com queixas. Deve ser a idade.
Aliás, inicialmente achei que o tal incômodo nas costas fosse apenas mais um item da generosa lista dos regalos del tiempo: dores generalizadas, tédio abrangente, medo da morte e, nas horas mais improváveis, um sono invencível.
Depois do passeio – parque com pombos insolentes, vitrines aborrecidas, cãezinhos com ânimo excessivo, gramados irregulares, infinitos caminhos de terra e a firme recusa em buscar pedaços de pau –, a volta ao lar. O lanche foi bom e a sesta reparadora. Bendito sono.
Acordei sem dores nas costas; vivo.
Entretanto, antes do acalanto da rotina – essa querida e velha tia calada que sempre se insinua –, ainda me espreguiçando, fui arrastado para a frente de uma iluminada televisão, na sala de estar, no centro de uma constelação familiar.
Ridiculamente convencido a ficar de frente para a tela, ganhei pipocas, meu cobertor favorito e muitos olhares. Tudo muito estranho. Conheço a minha gente.
Ainda mais estranho foi reconhecer no vídeo, agora em 4K, seja lá o que isso signifique, cada tormentoso pedaço do meu passeio matinal.
Lá estavam todos meus caminhos e, no reflexo da primeira vitrine, na loja de calçados femininos, a razão do meu incômodo matinal: montada nas minhas costas, uma infeliz filmadora, a razão das minhas lembranças kafkianas.
Inocente família, não só não viram o reflexo que denunciava o truque, com também não viram que são eles os objetos de minhas atenções, jamais os meus andares. Mesmo velho e rabugento, só tenho olhos para eles. Com relação ao filme, fingi interesse.
Estranhos esses humanos, muito estranhos.
Vitor Bertini
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Do tempo em que eu só falava:
– Só isso, dona Irany?
– É o que tínhamos para hoje, meu filho.