Ernesto, dizem, é um perigo
#151 Quando a polícia chegou com o mandato, ele não pôde fugir do flagrante.
Brasil, parece ficção, 16 de junho de 2023.
ERNESTO, DIZEM, É UM PERIGO
Quando perguntavam sua idade, Ernesto dizia seu nome.
Quando a polícia chegou com o mandato, ele não pôde fugir do flagrante – sua casa tinha palavras por todos os cantos. Ernesto, dizem, escrevia.
Sem explicar nada, dizem que ele não gostava, contou que sentava para trabalhar todos os dias; os personagens, às vezes, é que não apareciam. Sem donos, as palavras ficavam soltas e, como baratas, multiplicavam-se e escondiam-se nos cantos.
Mesmo inconformado com a situação, Ernesto não falou nenhum palavrão. Disse que era um recurso pobre, ou genial. Também disse que tentava fugir da pobreza e negou conhecer a tal genialidade.
Sobre a pobreza, agora que ele havia sido flagrado – seria exposto, processado, difamado, julgado e obrigado a usar uma tornozeleira ou, disseram, encarar uma cadeia dura –, suas esperanças de fama e riqueza, que ele nunca buscara, haviam retornado. Sobre o que não alcançava, preferia calar.
No centro da cena do crime a policia, diligente, viu e recolheu, como elemento de prova, a folha que estava em sua máquina de escrever – e dizia que seu nome era Ernesto.
Na folha que virou prova, dizem, estava escrito: “Diferente de Sancho e Dom Quixote, os personagens de Shakespeare não ouvem uns aos outros.”
“Face ao foro privilegiado dos personagens citados na Prova nº1, remeto o processo à instância superior.” – Dizia o despacho, e o despacho do despacho do despacho.
No Supremo Superior a audiência foi fulminante. Ernesto entrou no plenário vestindo seu chapéu de feltro, gritou que era inocente e mais não disse. A seguir, tirou seu chapéu e com ele esborrachou um mosquito que estava pousado na bancada das autoridades e que tinha as perninhas pintadas de branco.
Na sentença condenatória Ernesto foi considerado um perigo. Dizem. Dizem, porque por aqui a verdade tem dono, e porque sobre a sentença foi declarado um sigilo de mil anos.
Vitor Bertini
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Lembrou de alguém?
Mas fale como se escrevesse seu testamento: quanto menos palavras, menor o número de passos… e processos.
– Não me abandone, Vitor Bertini, Editora Esquina do Lombas
Por favor, o meu chapéu.
Bom fim de semana.
Maravilhoso. Preciso, rápido e ágil, dominando a narrativa de um realismo preciso dentro do universo dos absurdos - a linguagem.