Verrières, 19 de abril de 2024.
Acho que já comentei por aqui, mas, vamos lá: por força de escrever um prólogo, terminei lendo o clássico O vermelho e o negro.
Antes da leitura, Julien Sorel, o herói da trama de Stendhal era, para mim, apenas um som. Hoje, muitas páginas depois, Julien estudou comigo. Lembro disso.
Por que ler os clássicos? Segundo Calvino, a única justificativa que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não os ler...
Verrières, a cidade de onde escrevo, é uma criação do Stendhal: não existe. Stendhal, o autor que cito – insistentemente – não existe: é uma criação de um francês chamado Marie-Henri Beyle.
Moral da patranha: quem não lê, não existe.
Bom fim de semana.
DUAS MUDANÇAS
– Duas mudanças equivalem a um incêndio – lamentou Eduardo, empurrando com o pé uma caixa de papelão cheia de sapatos.
Maristela, a esposa, sentada no chão, rodeada de roupas e mais sapatos, ouviu a frase em silêncio e, sem levantar os olhos, viu as pernas do marido – ainda resmungando alguma coisa – desviarem de uma pilha de blusões e saírem do quarto.
– Vou começar a separar as minhas coisas aqui na sala. Quando você terminar de embalar seu roupeiro, você me avisa – falou Eduardo, traindo sua irritação.
– Amor, estou encaixotando nosso roupeiro e acho que você deveria me ajudar. Mas, se arrumar suas coisinhas vai lhe fazer bem, fique à vontade. – Devolveu Maristela, que, falando baixo, continuou:
– Agora, se você continuar gritando e chutando caixas, dona Marisa, aqui do lado, em dez minutos liga para a portaria.
– Eu não chutei caixa nenhuma, tirei ela do meu caminho. E também não gritei – gritou Eduardo.
Eduardo e Maristela estavam casados havia sete anos. Moravam juntos há nove.
Nos primeiros dois anos moraram no apartamento de Maristela. Na verdade, no quarto e sala do “querido sogro”, como dizia Eduardo, e onde não pagavam aluguel. Foi um período de pia com louças sujas, muitos bares, muito riso e noites intensas.
Depois, na formalização do casamento, a primeira mudança de endereço.
– Não precisamos de muito espaço, apenas o suficiente para plantar-mos nossos amigos, nosso discos e livros, e pouca coisa mais – dizia Maristela, brincando com a letra da música.
Entretanto, sete anos de casa e casamento trouxeram, além da inevitável rotina e do aumento do número de discos e livros, uma enorme quantidade do que Maristela chamava de coisinhas e sobre as quais Eduardo, conformado, dizia não ter nenhuma responsabilidade.
Agora, preparando a segunda mudança – afinal, onde colocar cinquenta e duas polegadas de pixels coloridos? –, estas coisinhas brotavam dos lugares mais inesperados e ocupavam, literalmente, todos os espaços do apartamento.
Foi exilado na sala, separando lembranças, que Eduardo achou, caída atrás de um gaveta, uma edição manuseada do livro Todo amor, do Vinícius, que ele não lembrava de ter comprado, lido ou sequer visto. Na folha de rosto, uma dedicatória “à paixão de minha vida” levava um B. como assinatura e a data de sete anos atrás.
O barulho que provocativamente vinha sendo feito ao mexer nas gavetas, empilhar o que quer que fosse ou simplesmente rasgar papéis velhos, emudeceu. Em silêncio, a dedicatória foi relida algumas vezes, a irritação foi substituída pelo gosto amargo do ciúmes e o livro, por impulso, foi largado no mais visível espaço livre da sala: de pé, no aparador, encostado no porta-retratos com a foto do casal.
Inseguro, ainda tonto, precisando de tempo para pensar e recuperar-se, o marido da Maristela buscou refúgio:
– Vou para o banho – falou, usando um inédito tom de voz.
Na saída do banho, metade da sala estava organizada e o livro, o maldito livro, estava exatamente no mesmo lugar.
– Amor, bateu a fome. Vamos pedir um delivery? – Perguntou Maristela, tomando a iniciativa do diálogo.
– Estou sem fome. Peça o que você quiser – respondeu Eduardo, ainda secando a cabeça.
– Hoje estou com desejos – afirmou sorrindo. – Vamos comer Mushies.
– Mushies?
– Sim, Mushies: um sanduíche maravilhoso de pão burger, cogumelos portobello, blue cheese e rúcula. Você não lembra?
– Não sei… Não foi o que comemos em um restaurante lá em Pinheiros, há um século atrás?
– Isso mesmo, o Low. Naquela rua com as livrarias, com aqueles sebos todos. Até compramos poesia por lá, lembra?
– Isso fica do outro lado da cidade – observou, Eduardo, largando a toalha molhada no sofá.
– Não tem importância, não tem por aqui. – Respondeu a esposa, fingindo não ver a toalha. – Vou fazer o pedido.
Eduardo calou, sentou, coçou a cabeça e lembrou vagamente de uma livraria. Lembrou também de uma pequena pilha de livros usados trazidos para casa, depois de uma noite de muito vinho e alguns sanduíches.
Quando Maristela retornou à sala, Eduardo tinha recuperado a cor, guardado a toalha e sumido com o livro.
Os Mushies estavam maravilhosos.
Foi durante a higiene do marido, antes de recolherem-se ao quarto, que Maristela, a esposa, jogou fora a nota fiscal que ela havia encontrado dentro do livro do Vinícius.
A mudança só voltou a ser irritante dois dias depois.
Vitor Bertini
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Lembrou de alguém?
E para quem acha que exagerei nos parágrafos iniciais desta carta que não é carta, aqui vai um pouco do Desassossego do mestre Fernando Pessoa:
O meu triunfo máximo no gênero foi quando, a certa hora ambígua de aspeto e luz, olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos – curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço-cetim, não sei como, sob o espaço que perdura na abominável terceira dimensão. E a hora cheirou-me verdadeiramente a um ruído arrastado e longínquo e com uma grande inveja de realidade...
Excelente!