Diagnóstico
#161 Voltei para a cozinha, apaguei o cigarro, cortei salame, comi pão com salame e tomei duas xícaras de café morno.
Comecemos por aqui, 25 de agosto de 2023.
DIAGNÓSTICO
Hoje é segunda-feira. Ontem, domingo, decidi escrever um diário.
Hoje é segunda-feira. Acordei. Tomei banho. Fui comprar pão. Comprei pão e um maço de cigarros.
Voltei da padaria. Comecei a passar café. Parti o pão, passei manteiga e mordi um pedaço. Mastigando, acendi um cigarro e fui no banheiro lavar as mãos; devia ter ido antes. Mãos secas, encostei na parede entre a pia e o vaso e traguei profundamente. Fiquei um tempo fumando e olhando a fumaça. Alisei a toalha de rosto e juntei e pendurei a toalha do banho. Voltei para a cozinha, apaguei o cigarro, cortei salame, comi pão com salame e tomei duas xícaras de café morno. Na porta da rua, olhei para a sala vazia e peguei outro cigarro. Não acendi. Joguei o cigarro fora. Voltei à cozinha e guardei a manteiga e o salame. Tapei o pão. Peguei outro cigarro e devolvi ao maço. Há dois anos eu não fumava. Fui trabalhar.
Fui a pé até a loja. No caminho, acenei para os conhecidos e acendi um cigarro; apaguei na chegada ao trabalho. Atendi no balcão. Fui tomar café na esquina. Fumei. Voltei para o balcão até o fim do expediente.
Sábado, completou uma semana que a Marlene morreu; dois anos depois do maldito diagnóstico. Desde sábado que tenho a estranha sensação de me observar ao longe: lá vou eu, voltando para casa. Parece que choro. Acho que voltei a fumar.
Vitor Bertini
Cada um é filho das suas obras.
– Don Quixote, Parte 1, Capítulo 47 - Miguel de Cervantes
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Sigamos, ainda é sexta-feira.
DIAGNÓSTICO II
Vitor é brasileiro e meu amigo. A família de sua mãe é de origem alemã e a do pai, italiana.
Um dia, viajando a trabalho, em Berlim, na portaria do hotel onde estava hospedado, pediu a indicação de um restaurante que fosse frequentado por berlinenses. Não queria um ambiente de turistas.
Indicação aceita e uma caminhada depois, sentado em uma mesa para quatro pessoas, sozinho, ele não demorou a vivenciar, conforme tinha solicitado, os hábitos locais. Duas alemãs, uma de frente para a outra, vieram fazer companhia para seu schnitzel mit fassbier.
Entre garfadas e goles, o incontido espírito brasileiro não tardou a fazer sua apresentação:
– Obrigado pela companhia, meu nome é Vitor de tal e sou brasileiro.
– Nice to meet you.
No parágrafo seguinte, uma troca de cartões e o primeiro nome da primeira alemã: Ute.
– Úthe – lê o brasileiro em voz alta, só para ver quatro olhos arregalados em sua direção.
– Você não disse que era brasileiro?
– Yes, I am.
– E como você acertou a pronúncia do meu nome? Todo estrangeiro diz Iúth, com pronúncia americanizada.
Diante da explicação de que ele era a terceira geração nascida no Brasil, mas descendente de famílias alemães e italianas e de que havia passado a infância ouvindo sua avó materna falar em alemão, as fisionomias ficaram sérias:
– Descendente de alemães e italianos e nascido no Brasil, você não sente falta de uma identidade? Não lhe faltam referências?
– Claro que não – respondeu rindo. – Nunca pensei nestes termos e nunca me senti sem referências. Sou brasileiro.
Depois, já com o digestivo servido, explicou longamente suas certezas sobre o belo futuro reservado ao país em que nascera. Um pouco mais tarde, sorridentes e alimentados, despediram-se.
Ontem, o Vitor me ligou:
– Xará, lembra a história daquelas alemãs?
No fim do telefonema, uma constatação: meu amigo anda inquieto com suas antigas certezas.
Acho que é tudo ficção.
Bom fim de semana.
Você não falha em comover e em colocar beleza na delicada trama da melancolia que é do viver.
Bom demais. Narrativas do cotidiano, a primeira uma tragédia silenciosa e corrosiva, na segunda uma experiência nostálgica que reafirma uma identidade rica de quem não tem certezas atávicas.