Dezesseis dobras
#232 — Acho isso fascinante. — Comentou o pai, vendo o avião de papel planar durante inacreditáveis quinze segundos.
Quase Lapônia, 20 de dezembro de 2024
DEZESSEIS DOBRAS
João aprendeu a fazer aviõezinhos de papel com o pai. Da mãe herdou a simplicidade, o olhar sereno e algum ceticismo.
Denise sempre quis aprender a tocar piano e já foi catequista. Hoje, coleciona sapatos, tem muitas certezas, é sócia em um promissor escritório de advocacia e diz não ter tempo para nada.
João e Denise moram juntos há três anos. Ele quer casar; ela sorri, chama ele de marido e reclama da agenda profissional.
..
— Acho isso fascinante. — Comentou o pai, vendo o avião de papel planar durante inacreditáveis quinze segundos.
Ao seu lado, olhos fixos no pequeno milagre, o menino João:
— Pai, faz um destes pra mim? — Gritou, correndo atrás do brinquedo.
— Este é seu, meu filho. Mas, é claro que faço outro. Venha cá! Vamos fazer juntos. Olhe como é.
Papel retirado de uma pilha de folhas sobre a mesa de trabalho, mãos e dedos firmes, dezesseis dobras, dois cortes nas asas e a esquadrilha estava formada.
— Pai, esse papel é especial?
— Não, meu filho, não é. Especial será qualquer dia que você fizer eles voarem — respondeu o pai, entregando o aviãozinho. — Vai, lança este. Segura aqui embaixo, na parte mais grossa. Agora, braço pra trás, olho pra frente e fé na gente! Isso. Assim. Vai!
..
Naquela noite, Denise chegou em casa mais tarde e mais séria do que de costume. Abriu a porta, caminhou até a mesa da sala de jantar e largou sua bolsa, uma sacola de compras, o molho de chaves e dois envelopes; puxou uma cadeira, vestiu o espaldar com seu blazer, sentou, tirou os anéis e os sapatos e se deixou ficar por dois minutos. Descalça foi até a cozinha, escolheu um vinho, pegou dois cálices, voltou para a sala e chamou quem queria casar:
— João Vitor! — Comandou com voz firme, já servindo a bebida.
João saiu do escritório com seus óculos de leitura ainda sobre o nariz e um livro nas mãos; espiou a bagagem do dia sobre a mesa, fingiu não ter ouvido seu segundo nome — sempre sinal de assunto sério —, recolheu seu cálice e sentou no sofá.
— Opa, vamos comemorar mais um par de sapatos? — Provocou.
— Na verdade, não. As celebrações são outras. Ainda assim, já que você insiste, não me importo nem um pouco de desfilar com o novo modelito — devolveu Denise, ensaiando um gole de vinho, mas desistindo antes de calçar a novidade.
No improvisado desfile de 8 passos, a modelo calçava a compra do dia, a advogada carregava os dois envelopes que havia trazido e a dona da casa sorria pensando no gesto mecânico de servir dois cálices de vinho.
— Gostou? — Perguntou, encerrando seus passos com uma pequena coreografia.
— Gostei dos sapatos, não entendi este seu sorriso e tenho medo destes envelopes.
— Senhor João Vitor — declarou com voz empostada e fazendo uma pausa dramática —, aqui, neste envelope, está a relação de documentos necessários e o agendamento proposto para a estréia dos novos sapatos. Olhe com calma e veja se a data de seu casamento está de acordo com as possibilidades da sua agenda.
Diante do olhar de espanto e do silêncio do surpreendido futuro marido, e antes que ele pudesse piscar, ela seguiu:
— E este aqui, por favor, examine com cuidado enquanto vou para o banho — falou, fugindo para a suíte.
Na ausência da Denise, João leu três vezes a única folha do segundo envelope. Depois, levantou e foi buscar papel.
Quando Denise voltou, João Vitor, o futuro marido e pai, sentado no sofá, com os pés descalçados apoiados na mesa de centro, sorria largo, bebia vinho e lançava aviões de papel no ar.
— Acho tudo isso fascinante — concluiu, antes de receber a esposa no colo.
Vitor Bertini
A Profeflor, Vitor Bertini, edição do autor - Esquina do Lombas
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Se tudo correr bem, falamos ainda este ano.
Feliz Natal.
Beijos generalizados.