Cumplicidade
#138 João Carlos é engenheiro, cartesiano, empreendedor bem-sucedido, homem de decisões e pai de duas filhas.
CUMPLICIDADE
– Tem certeza, minha filha?
– Tenho sim.
– Você não acha…
– Pai! Tenho certeza; é hoje, e é o Ignácio!
A mudança no tom de voz, no olhar e no fato da segunda resposta vir acompanhada de três movimentos de um dedo indicador apontado, calou João Carlos.
João Carlos é engenheiro, cartesiano, empreendedor bem-sucedido, homem de decisões e pai de duas filhas.
Clarice é a primogênita. Tinha 17 anos, estava no segundo ano de psicologia, tocava violão para a família nos fins de tarde dominicais e namorava o Ignácio – havia sessenta dias.
Ainda administrando a descarga de adrenalina que a informação causara, João Carlos, o pai, buscava um encaminhamento para o surpreendente diálogo:
– Minha filha, me entenda. Estava… estou… Você repartir comigo esta novidade… tão pessoal… – Catava as palavras em voz baixa, tentando normalizar a respiração.
Dez segundos de hesitação, e o engenheiro encontrou seu discurso:
– Esta é a nossa cumplicidade! Foi o que construimos, não foi? O que eu posso dizer que não seja em louvor de nossa relação? Muito obrigado, minha filha. Estou até emocionado. – Concluiu, dando dois passos em direção à filha, só para receber dois tapinhas no ombro direito.
Homem determinado e, afinal, pai da menina Clarice, João Carlos não se deu por satisfeito. Baixou a cabeça, alinhou os braços ao lado do corpo, suspirou profundamente, colocou o peito à frente, olhou por baixo das sobrancelhas agora erguidas e, com voz rouca, fez seu melhor movimento:
– Minha filha, que bom que você dividiu comigo. Eu te amo.
Clarice repetiu os dois passos, ficou na ponta dos pés e encheu o pai de beijos.
Naquela noite, João Carlos não dormiu.
Até hoje, são muitas as noites em que João Carlos não dorme: Clarice ficou convencida de que é importante dividir a informação com o pai sempre que troca de parceiro ou namorado.
Vitor Bertini
A página que você está lendo é mantida unicamente por seus leitores, sem patrocínios ou publicidade. Se você acha que essas Histórias do Bertini valem um café por mês, aqui vai um botão para tornar isso realidade. Obrigado.
Lembrou de alguém? Compartilhe:
A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
– Brás Cubas
– Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis, Abril Cultural, 1971
Agora que as visitas foram embora, deixa eu contar duas coisinhas: