Cortina de rolhas
#110 – Paulão, por favor, venha contar o que aconteceu hoje.
Praga, 2 de setembro de 2022.
Tenho certeza que o fato da minha semana trazer de arrasto dois conceitos escritos pelo Paulo Leminski não tem nenhuma importância. Para ninguém. Só para mim:
“Em termos planetários (e de mercado, digo eu), escrever em português e ficar calado é mais ou menos a mesma coisa”, e, “a mais incrível palavra criada em português do Brasil foi jeito”.*
Entre mercados e jeitos, melodias, palavras, goles e carinhos sem ter fim, meus votos de boa leitura e bom fim de semana.
CORTINA DE ROLHAS
Seu Willy, Dr. Wilhelm, era catedrático de filosofia do direito, usava ternos de corte inglês, lia Kelsen em alemão, palestrava como poucos e, sempre que possível, falava de estranhamentos.
Homem metódico, cauteloso, o ritual de negociação dos convites para eventos, notadamente os que envolviam viagens terrestres, era sempre o mesmo: dificuldades iniciais, o aceno com uma pequena possibilidade, um enervante tempo de silêncio e, na última hora, o sim, eu vou. Tudo sob a intermediação de dona Elvira, sua eterna secretária.
– Reclama, mas sempre vai – dizia a assessora.
Paulão, motorista e “pau pra toda obra”, tão eterno quanto dona Elvira, compunha o restante da equipe.
Entre suas diversas atividades, a que Paulão mais gostava era quando tinha que contar uma história. Aprendera que o chefe as chamava histórias de espanto - e que depois dele, em tom descontraído, o professor seguia falando sobre o assunto.
– Paulão, por favor, venha contar o que aconteceu hoje.
Orgulhoso, Paulão não se fez de rogado:
– Na metade da viagem paramos em um restaurante. As mesas estavam vazias, mas o chefe não gostou das toalhas de plástico. Então fomos para o balcão, mesmo estando lotado. Ficamos ali em pé, atrás da fileira dos sentados nas banquetas. Com sacrifício consegui pedir duas águas com gás e dois copos limpos, sem gelo e sem limão, como o professor gosta. O balconista ouviu o pedido e sumiu atrás de uma cortina de rolhas, todas emendadas. Demorou. Depois, o rapaz colocou a cabeça pra fora da cortina nos procurando, olhou para todos os lados, e gritou: para quem são os copos limpos?.
Vitor Bertini
TAKE A PEEK
E vós, por vosso lado, quereis guardar vossa virtude para vosso amado (que não abusa dela), e só adorais no amor as tristezas, não os prazeres. Nada mais certo, e figurareis admiravelmente num romance. Paixão, infortúnio, virtude acima de tudo, quanta coisa linda! No meio desse brilhante cortejo, a gente se aborrece em verdade, por vezes, mas também aborrece os outros.
– As relações perigosas, Chardelos de Laclos, Abril Cultural, 1971
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Ali em cima, tudo é ficção; aqui, embaixo, nenhuma palavra em vão;
* Ensaios e anseios crípticos, Paulo Leminski, Coleção Gazeta do Povo, 2014;
Esse hebdomadário perdeu seu cavalo, continuou andando, viu a miragem de Pasárgada e – em verdade vos digo – vai parir um livro que, dizem, será surreal;
Vender é contar histórias é uma palestra em construção: tijolo por tijolo em um roteiro de Joseph Campbell;
“Em Paris, as mulheres são perigosas”, e, “de Portugal não vem, nem bons ventos, nem bons casamentos”. Um dia eu conto;
Antiga e persistente mensagem na garrafa: você que chegou até aqui por curiosidade, gosto ou preguiça, ajude o autor clicando em qualquer botão verde perdido por aí.
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