Repetindo receitas, 10 de novembro de 2023.
CORPO E ALMA
Açougueiro vende carne e entrega cumplicidade. Georgy Butka era cúmplice das beatas na carne que vendia e amigo dos cães quando jogava carne na calçada.
Quando as beatas faziam compras no açougue, só uma falava, e Butka respondia. Quando todas as beatas falavam ao mesmo tempo, Butka, o açougueiro que ouvia clássicos e lia Babel, calava. Com os cães era diferente. Enquanto os cães comiam a carne jogada na calçada, Butka comentava notícias, citava autores, fazia confissões, lembrava fatos históricos e, com frequência, parecia dar e ouvir conselhos.
Em uma segunda-feira qualquer, alheio à obstinada chuva que insistia em deixar todos em casa, inclusive Bénya, Pata Branca saiu a caminhar. Fome ou destino, o fato é que o pequeno cão molhado parou em frente ao estabelecimento de Georgy Butka.
– Entre, meu amigo. Normalmente cães de rua e clientes de açougue não gostam de chuva. Muito menos às segundas-feiras. Hoje o banquete é só seu – disse, sumindo atrás do balcão. Depois, Butka enxugou as mãos no avental, serviu uma tábua de carnes e começou a falar.
– Você sabe por que sempre digo a frase “proteína para enfrentar o mundo”, Pata Branca? Porque sem proteínas o corpo morre. E, sem liberdade, morre a alma!
Solitário ouvinte, Pata Branca dividia sua atenção entre os pedaços de costela e as falas dispersas do açougueiro.
– O ofício de açougueiro é prático; açougueiro desossa, pica e vende. O difícil é equilibrar a sensibilidade entre cortar um animal e tratar com clientes.
Feita a confissão em um tom mais alto e percebendo que o pequeno cão havia esquecido as carnes para ficar de prontidão, Butka gargalhou.
– Assustado comigo, Pata Branca? – Relaxe! Coma que a proteína eu garanto. Seus medos devem ser outros! Cuide com o estado e com as hierarquias! Elas são o demônio!
Identificar a origem ou as razões das manifestações de Butka não era um exercício simples; muito menos para quem, passando na calçada, ouvisse apenas uma parte da conversa.
Padre Pedro demorou para convencer as beatas de que a frase “elas são o demônio”, dita pelo açougueiro em direção a um cão, não era um exercício de exorcismo e, muito menos, dirigida a elas.
Aliviadas, as beatas deixaram a sacristia.
Pensativo, padre Pedro sentou.
Vitor Bertini
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Um dia, um dos meus filhos ensinou:
– Pai, compartilhar é como abraço: só é bacana se for espontâneo.
Observações sobre a vida que dá voltas:
Reler o que você já publicou – em papel impresso – é desafiador. Como regra, não gosto;
A sobrevivência – essa senhora de destinos – e textos mais longos me levaram ao exercício da releitura de hoje. Pelo apreço à cumplicidade, pelo horror a estruturas autoritárias e ao fato de já ser tarde, embarquei de Corpo e alma.
Vocês conseguem ver as nuvens que embalam a melancolia de quem pede para não ser abandonado?
Alguém viu meu chapéu?