Wannabe, 24 de março de 2023.
COMPANHEIRO DE VIAGEM
Incomodado com o sinal fraco do celular, sozinho na caminhonete estacionada na garagem do edifício em que morava, Celso vasculhava as redes sociais em busca das repercussões sobre a palestra que havia ministrado horas antes quando Olga, sua mulher, mandou uma mensagem de texto:
– Foi tudo bem? Sucesso?
– Tudo certo. Vou para casa em minutos.
– No caminho você passa em uma farmácia? Cólica.
– Acho que não rola.
– ??
– Exausto e com fome. Bj.
O silêncio da esposa – e das redes – fez com que Celso mudasse de ideia.
– O remédio de sempre?
– Sim. Amo você.
– Vou demorar um pouco mais, ok?
– Ok. Bjs.
– Bj.
Na saída da garagem, diante de um portão que abriu sozinho, Celso fez um gesto em direção à câmera de segurança agradecendo ao porteiro de plantão.
Marcelo, o provável porteiro, era uma figura interessante. Na primeira noite no apartamento recém-adquirido, voltando a pé de uma happy hour comemorativa, o casal encontrou a porta do edifício aberta e o porteiro fazendo mesuras:
– Sejam muito bem-vindos. Meu nome é Marcelo. Sou o porteiro da noite.
– Prazer, Marcelo. Somos os novos moradores do 703. Obrigado pelas boas-vindas.
Alguns passos adiante, já no hall dos elevadores, enquanto Olga conferia as reações das amigas às fotos da comemoração, na chegada do elevador, segurando a porta com uma mão e apertando o botão do sétimo andar com a outra, o porteiro não se fez de rogado:
– A senhora se importa de me dizer que aplicativo é esse?
– Esse é o Instagram – respondeu Olga, sorrindo, surpreendida pela pergunta.
– Só tenho Face – seguiu Marcelo, sem largar a porta. – A senhora usa o Face?
– Tenho uma conta, mas quase não uso – devolveu Olga, olhando de baixo para cima no momento em que apanhava, junto com o marido, a echarpe que havia caído.
Nos segundos em que ajudava a limpar a echarpe e sem dar chance para novos fôlegos, Celso tratou de encaminhar a vida:
– Querida, suba na frente. Vou ensinar nosso amigo a baixar e usar o Instagram – falou, saindo do elevador.
Naquela noite, morador e porteiro viraram amigos no Face. Celso postava políticas identitárias; Marcelo, churrascos e vinhos baratos.
No retorno da rápida ida à farmácia, novamente estacionado na garagem do prédio, inconformado, Celso voltou às redes – mesmo de sinal fraco. O conteúdo da palestra era disruptivo; o reconhecimento e a repercussão deveriam ser grandes.
Sentado em sua 4x4, no escuro, aflito pela demora em voltar para casa e pela absoluta ausência de menções nas redes à sua apresentação, Celso buscou uma explicação: “não me entenderam”.
Abatido, guardou o celular, pegou a sacola da farmácia, deixou suas anotações espalhadas no banco do carona, fechou a porta da caminhonete, agitou os braços para acender as luzes e atravessou a garagem. No elevador, olhou para a câmera, sorriu sem saber para quem e apertou o botão com o número sete.
A seguir, no fechamento da porta, conferindo o conteúdo da sacola baixou o olhar. No chão, no canto oposto do elevador que já subia, um par de olhos e o corpo retesado de um camundongo, pronto para começar a correr e pular.
Os gritos e pulos que aconteceram não combinavam com a imagem que o marido de Olga cuidava com tanto esmero. Vinte segundos depois, quando o elevador parou e a porta abriu, Celso correu primeiro. O camundongo ficou.
Decidido a só entrar em casa quando o suor secasse, Celso mudou de opinião ao ouvir tocar o interfone da portaria.
– Alô, Dr. Celso? Marcelo, da portaria. Está tudo bem com o senhor?
– Tudo certo, Marcelo. Por quê?
– Acho que ouvi uns gritos e barulhos vindos do elevador. Está tudo certo, né?
– Obrigado. Está tudo certinho sim, sem galho.
– Estranho… mas, ok. O doutor sabe, né? Qualquer coisa, é só chamar.
O palestrante da noite ainda estava se recompondo quando Olga apareceu.
– O que era?
– Nada. Tome seu remédio. Como estão as cólicas?
– Como assim, nada. O que o Marcelo queria?
– Nada, coisas de Instagram, sei lá…
– Este cara não sai das redes. Agora deu para postar vídeos.
No meio daquela noite, Celso acordou, deu um pulo e sentou na cama. Postar vídeos! E se o porteiro olhasse as imagens da câmera do elevador?
Celso passou o resto da noite em claro – e o dia seguinte angustiado –, pensando.
Quando Marcelo chegou para trabalhar, Dr. Celso estava sentado na sala de espera, no hall do prédio, segurando uma sacola parda.
– Boa noite, doutor.
– Boa noite, Marcelo. Você tem um minutinho?
– Claro, doutor. Dona Olga vai bem?
– Tudo certo, tudo bem.
– No que eu posso ajudar?
– Nada muito importante. É só uma curiosidade. O que é feito com as cópias das imagens captadas pelas câmeras de segurança do prédio? Você sabe?
– Olha… antigamente elas ficavam gravadas em discos. Agora, elas ficam armazenadas no HD do computador. Só são acessadas em caso de necessidade.
– E quem tem acesso a elas?
– Bem, o pessoal da administração é quem tem a senha. Alguns supervisores, às vezes, também tem.
– E aqui, no nosso prédio, quem tem?
– O doutor sabe que eu gosto um pouco destas coisas de tecnologia, não é?
– Você tem acesso? Você tem as senhas?
– Até tenho. Mas acho que as imagens dos últimos dias enfrentaram algum problema de software.
– De software? Software? – Repetiu Celso, enquanto olhava para o rosto sereno do porteiro. – Software, é?
– Isso, software.
– E como eu posso ter certeza disso?
– Doutor, está comigo, está com Deus. Fique tranquilo.
Celso baixou a cabeça, pegou a sacola com vinhos e queijos e alcançou para o porteiro.
– Mês que vem tem mais.
– Não se incomode doutor. Está comigo, está com Deus – repetiu o porteiro da noite. O interessante Marcelo.
Foi só no fim de semana seguinte que Marcelo voltou a tomar café no sítio de sua tia Clarice:
– Ô meu filho, não vai me dizer que você veio caçar outro camundongo.
Vitor Bertini
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Durante muito tempo, uma das paredes do meu escritório exibiu um cartoon do Luis Fernando Veríssimo. Nele, dois homens lutam karatê:
– Hanaká! – Grita o primeiro, ensaiando um ataque.
– Kanamá! – Responde o segundo, colocando-se em posição de combate.
– Ai! – geme o que recebeu o primeiro golpe.
Aviso aos navegantes: quase tudo ficção.