Cinco sentidos e um sapato
#228 Na razão das cidades, eu tinha razão. Sou a vítima. Só isso.
Faria Lima, 29 de novembro de 2024
CINCO SENTIDOS E UM SAPATO
Eu não senti dores. Senti a lata lisa, um barulho oco, o tempo suspenso, o mundo dando voltas, um gosto de sangue e o cheiro urbano das ruas da minha infância. Senti frio.
Na razão das cidades, eu tinha razão. Sou a vítima. Só isso.
Devo ter tido a solidariedade das pessoas que acorreram curiosas e, atrasadas, correram de volta aos seus caminhos – horrorizadas até breve. Alguém deve ter visto tudo e repetido várias vezes o que viu. Alguém especulou de onde eu vinha, e para onde eu ia. Alguém deve ter ficado olhando a cena até me levarem. Alguns cigarros devem ter sido acesos. Perdi um sapato — que ficou contando sua história — e o engarrafamento deve ter sido enorme. Lamentável. Só.
Eu estava calmo, quase contente, ia ver Maria Rita e ainda caminhava na calçada. Grande coisa, nunca quis morrer com razão.
Vitor Bertini
Ficamos assim:
O inspetor jogou a caixa de fósforos na mesa e disse:
— O senhor está cometendo um grande erro. Estes senhores e eu desempenhamos um papel puramente acessório no seu caso, e para falar a verdade não sabemos quase nada a respeito dele. Poderíamos estar usando um uniforme e seu caso não melhoraria em nada. Nem mesmo posso confirmar se está sendo acusado de algum delito. É evidente que está preso, mais do que isso não sei.— O Processo, Franz Kafka
— Força na peruca.
— Ãh?
— Nada, deixa assim.
— Bom fim de semana.
— Pra vocês também.
Em letras miúdas:
Ilustração do sapato feita pelo aplicativo gerador de imagens Dall-E - OpenAI (Chat GPT), com o prompt: A black and white vintage drawing of a rotten shoe, let alone in an empty street;
Ilustração do Papai Noel - Free Vintage Illustrations Library, Heritage Type Co;
Fotos dos livros, por Carla Zigon.