Chapéu corneta
#152 Maria estava sentada no banco, sorrindo, usando um vestido que eu não conhecia e segurando duas canecas.
Oceania, 23 de junho de 1984.
Gosto de livros escritos por artistas descrevendo seus ofícios – suas agruras, esperanças, técnicas, desilusões, motivações, sentimentos e trajetória.
Neste gosto – e nesta noite –, van Gogh, com Cartas a Théo, e Haruki Murakami, com Romancista como vocação, terminaram juntos, passeando de mãos dadas em minha mesa de cabeceira.
Insone, pensando no que me é dado testemunhar nesta quadra de nossas vidas, juro que ouvi:
– Se existe algo de original nos romances que escrevo, acredito que seja o fato de eu ser livre. – Falou mansamente o japonês.
– É que sinto em mim a obstinação e estou acima do que as pessoas possam dizer de mim e de minha obra – devolveu o pintor.
O diálogo devia ser um sonho e, por definição, eu estava dormindo. Virei para o outro lado.
Entre goles, queijos, sonhos e beijos, boa leitura e bom fim de semana.
CHAPÉU CORNETA
No fim, eu que decidi o lugar em que ficaria o banco de jardim que minha esposa comprou.
No dia da entrega, quando ela me chamou para um café, a surpresa havia sido colocada nos fundos de nossa casa, em uma área de flores e árvores, perto da cozinha. Como sempre, atendi o chamado. Maria estava sentada no banco, sorrindo, usando um vestido que eu não conhecia e segurando duas canecas. Sorri de volta, fui até lá, agradeci o café, beijei sua testa, sentei e calei. Dalí, eu quase não via o céu, nem a rua.
Mudei o lugar do presente na manhã em que encontrei uma pena caída em nosso gramado. Era cedo, e acho que a cidade ainda dormia. Olhei para os lados, para os céus, marquei o local com um pequeno galho seco, guardei a pena e arrastei o banco.
Quando Maria viu a mudança, sorriu do seu jeito, veio e sentou comigo. Ficou um tempo calada. Depois, apontou com o queixo a janela do quarto de nosso filho e disse que a mudança tinha sido boa. Minha esposa não sabe do pássaro com quem falo.
Eu passo horas sentado no banco. Nosso menino passa horas fechado em seu quarto. Acho que ele desenha.
De ontem para hoje, tive uma noite agitada. Saí da cama cedinho e fui, em vão, encostado no banco, olhar para os céus. Só quando baixei o olhar é que vi o grupo de freiras com seus enormes chapéus corneta de abas brancas balançando como se fossem asas, caminhando em silêncio.
Também foi só quando baixei o olhar que vi nosso filho espiando na janela. Sereno, voltei para a cama.
Vitor Bertini
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Lembrou de alguém?
Ler é um ato solitário. Conversar com alguém sobre uma leitura em comum é fascinante.
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