Cerberus
#190 Butka aconselhou o corte e a receita, picou, pesou, embrulhou e, como sempre, vendeu a carne para suas clientes.
Procurando Max Perkins, 15 de março de 2024.
Assanhado com o trabalho de editar o livro destas histórias – A Profeflor –, não ouvi as batidas na porta da frente nem recepcionei o tempo.
Senhor das suas prerrogativas, discreto, ele veio sem ser chamado e não se fez de rogado: entrou por onde não vi, serviu-se da melhor bebida e ocupou a minha melhor poltrona. Quando me dei conta da sua presença, sereno, avisou que eu tinha uma História da sexta para encaminhar.
Atrapalhado, sorri e lembrei da saga do cão Bénya Krik – a aventura do personagem e a minha, editor que fui do Não me abandone, meu primeiro livro. Sempre fascinante.
CERBERUS
Foi a conversa das beatas que fez com que Butka reparasse pela primeira vez no estranho cão vermelho parado na frente de seu açougue.
– Esse cachorro me dá calafrios – disse a primeira beata conferindo, por sobre os ombros, se não estava sendo seguida ao caminhar para o balcão.
– Deixa ele… como nós, é uma criatura de Deus – emendou a segunda.
– É, pode ser… mas, para mim, está mais para o porteiro do inferno… e deste, minhas amigas, eu quero distância! – completou a terceira beata, fazendo o sinal da cruz.
Butka aconselhou o corte e a receita, picou, pesou, embrulhou e, como sempre, vendeu a carne para suas clientes. Na saída, trocando olhares com o açougueiro, as beatas fizeram, todas ao mesmo tempo, juras em direção ao cão vermelho:
– Não somos gulosas, viu? De modo algum! De modo algum! E lá se foram, falando e falando.
Quando as palavras das beatas viraram pequenos sons à distância é que Butka caminhou em direção ao cão vermelho e à sua cadeira na calçada. Nesse trajeto, como dois velhos que se conhecem pela fama, o olhar de um procurava a alma do outro. Tateando, o açougueiro localizou a cadeira, sentou, tirou o boné e secou lentamente a cabeça meio calva e a nuca, quase uma continuação das costas.
Uma vida em sessenta segundos depois, ainda sentado, imóvel, o olhar de Butka agora era refém de sua memória: Florença, 33 graus, o Rio Arno, a Ponte Vecchio, aromas da Aquaflor, a tumba vazia de Dante na Santa Croce, a Divina Comédia nas mãos e o cão Cerberus, o comedor de carne, na porta do Terceiro Círculo do Inferno, o Círculo da Gula.
– Tolo é quem toma as beatas por tolas – pensou em voz alta o açougueiro, voltando de sua viagem no tempo e na geografia.
Cheio de lembranças e reflexões Butka retoma um velho hábito, o hábito de conversar com cães.
– A esquina da Strozzi com a Via de Vecchietti, em Florença, ainda te presta homenagens? – iniciou o açougueiro para, sem esperar respostas, prosseguir: – Sem ressentimentos? Sabe, minha juventude chegou a achar que você havia desistido. Hoje sei que você está condenado a não desistir, meu velho. Seguimos com nossas naturezas, não? Agora você é um cão vermelho!
A seguir Butka calou, colocou o boné, levantou da cadeira, caminhou até o balcão e, enquanto cortava um naco de carne, percebeu que não havia música no ar. O açougueiro rejeitou o silêncio, escolheu um clássico italiano e foi dar de comer para Rosso.
O texto Cerberus é um capítulo do livro Não me abandone – a saga de Bénya Kryk, um cão de rua, contada pela família que ele adotou, Vitor Bertini, Editora Esquina do Lombas.
"O trabalho do editor é ajudar o autor a encontrar sua voz única e aperfeiçoá-la, não impor sua própria voz sobre o texto."
– Max Perkins*
* Maxwell Evarts Perkins foi um editor de livros que trabalhou para a editora Charles Scribner’s Sons, USA, por quase 40 anos.
No seu portfólio constam edições de escritores como Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, Thomas Wolfe e Marjorie Rawlings.
O filme O mestre dos gênios (Genius) conta a história da relação de Max com Wolfe e está disponível para alugar no Prime Vídeo.
O livro Max Perkins, um editor de gênios, A. Scott Berg, Intrínseca, está nas livrarias da praça.
Hoje, na lembrança da edição de um dia e na perspectiva do livro que virá, se me perguntassem “Bertini, por onde começo?” responderia generoso: “comece por onde você quiser, siga em frente e, chegando ao fim, volte. Sempre é diferente.”