Carlos, meu amigo
#130 – Desde "Diana, a Caçadora" – afirmou, sorrindo mineiramente.
Olá.
Rio de Janeiro, 20 de janeiro do inimaginável ano de 2023.
Eu tenho muitos amigos e Carlos é um deles.
A literatura e a vida estão cheias de histórias sobre amizades: íntimas, nem tão íntimas, próximas, afastadas, recentes, antigas, queridas, interesseiras, sazonais, virtuais, que viraram amor ou ódio, e até aquelas que simplesmente ficaram esquecidas nas inevitáveis esquinas do tempo.
Carlos é uma amizade antiga, mas, culpa minha, andávamos distantes. Sinceramente, não lembro as razões do meu afastamento. Da parte dele nunca faltou uma palavra, uma frase ou um verso de incentivo ou compreensão para com meus devaneios e sonhos, mesmo os mais loucos. Coisas da vida.
Essa semana, por nenhuma razão especial, tomei um tempo e visitei o Carlos. Coisas da alma. A acolhida de sempre, o mesmo sentimento, a mesma sensação de leveza, o mesmo sorriso e algumas novidades.
A primeira das novidades, eu jurando que não sabia e ele jurando que já havia me contado, era sua paixão pelo cinema.
– Desde Diana, a Caçadora – afirmou, sorrindo mineiramente.
A segunda novidade, eu recebi datilografada em duas folhas de caderno de pauta simples, dobradas sobre si mesmas, e com uma frase escrita à mão: setecentas e sessenta e seis palavras, em prosa, contando duas histórias.
Na despedida, quando contei sobre a edição do livro desses textos de sexta e seu financiamento coletivo, Carlos descruzou os braços e as pernas, fez um gesto, levantou-se e, sem dizer palavra, me abraçou. Depois, voltou a sentar-se de costas para o mar.
Já em casa, namorando parágrafos, confortado pelo abraço e encantado pela leitura das duas histórias, resolvi compartilhá-las com vocês.
Entre filmes, dois dedos de prosa, goles e um bj, boa leitura e bom fim de semana.
A VIÚVA DO VIÚVO
Conheceram-se, namoraram, casaram, tiveram filhos, desamaram, separaram-se, depois de tanto verbo conjugado em comum. Ele sumiu por aí, no anonimato sem responsabilidades. Ela ficou criando a trinca sem pai. Sem notícias um do outro, tempo passando, acontecimentos acontecendo, vida no corre-corre. Ela até nem se lembrava mais de que fora casada. Eis que o marido reaparece na lembrança, quando uma filha lhe diz:
– Mãe, o pai está no hospital.
Que pai? Não sabia de pai nenhum, o seu morrera há tanto tempo, depois de dar tanto trabalho. (Descansa em paz, deixando a família descansada.) Há outros pais vivos por aí? De quem?
– O meu, uai.
Ah, sim. O pai desta moça que está à sua frente, esta moça que é sua filha, e que antigamente tivera um pai. Um pai que fora seu marido, e que nunca mais aparecera, jogando sobre suas costas a obrigação de criar e educar os filhos. Como as coisas emergem de um poço escuro, de repente! Pois não é que o ex-marido voltava à tona, com seus sinais particulares, seu modo de falar, seu jeito de ser e viver? Tão antigo, tão inexistente - mas ali.
Ela parecia não dar mais atenção ao que a filha ia dizendo.
– Escutou o que eu disse?
– Hem?
– O pai está no hospital.
– Que é que ele foi fazer lá? Vender seguro de vida aos doentes? (Agora se recordava de que ele fora corretor de seguros.)
– Está doente.
– Como você sabe?
– Mandou me avisar. Não tem ninguém com ele, só a gente do hospital.
Então estava sozinho, depois de muitos anos, e se lembrava da filha para ter companhia no hospital. Não chegou a ter pena. Estavam tão distanciados os dois, que era como se soubesse que um japonês em Yamagata sofria de dor de dentes. A filha esperava um comentário, uma reação.
– Vai lá, querida.
Mais do que isso não poderia dizer, porque não havia nada mais a exprimir. Amores fanados não reverdecem, quando a vida caprichou em esmagá-los bem. Se alguma coisa tivesse ficado exposta à luz, se um gesto dele, mínimo que fosse, ao longo de tanto tempo, alimentasse um resto possível de sentimento, ela agora teria pena. Mas pena de quê? de quem? Se nem de si mesma sentia pena, conformada que estava com o irremediável das coisas, e refugiada, também, no pequeno mundo que se construira e em que convivia com artistas obscuros do passado, através de estudos e pesquisas que eram uma fonte de prazer, compensador de alegrias que não tivera no casamento?
– Vai, minha filha, e vê o que ele precisa.
A filha foi e voltou contando que ele estava mal, parece que dessa não escapava. Como de fato não escapou. Sem pessoa alguma para cuidar do enterro, nem bens que pudessem custear a despesa, quem tomaria providências?
Então a ex-esposa, pessoa decidida, acostumada a fazer na hora certa o que é necessário fazer, decidiu presentear o ex-marido com o enterro decente que não tinha mexido, e que a ela custaria uma nota desarrumado de seu orçamento modesto. Procurou a funerária, disse que pagaria tudo.
O empregado perguntou-lhe, entre xereta e reticente:
– A senhora era companheira do falecido?
– Companheira? Sou viúva dele.
– Perdão, mas o falecido, quando se internou no hospital, declarou que era viúvo. A senhora quer ver? Vamos lá na Secretaria.
– Pois eu sou a viúva do viúvo, entende? E não estou fazendo nada para ficar com a herança dele, que não deixou um tostão de seu, além de me matar no papel. E vamos com esse serviço depressa, que eu preciso cuidar da minha vida de viúva-desquitada há muito tempo, tá bom?
Carlos Drummond de Andrade.
* Carlos Drummond de Andrade, A viúva do viúvo, in Poesia e prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguiar, 6ª ed. 1988.
ANDORINHAS DE ATENAS
As andorinhas de Atenas são descendentes em linha direta daquelas que viviam no tempo de Anacreonte e que pousavam no ombro do poeta quando ele libava nas tavernas.
Esta informação, ministrada ao turista pelo guia, não mereceu crédito. Anacreonte (ponderou o visitante) não era de frequentar tavernas. Sentava-se à mesa dos poderosos e gozava de alta cotação social.
O guia não se impressionou com os conhecimentos biográficos:
— Pois olhe. Essas andorinhas foram trazidas de Samos pelo próprio Anacreonte, que por sinal selecionava as mais gordinhas para almoço. Era doido por andorinha no espeto.
— Como pode saber disto? — objetou o turista.
— Bem se vê que o senhor não conhece a Antologia palatina.
— Conheço-a, foi objeto da minha tese de mestrado, e não vi no texto uma linha que conte essa fábula.
— Meu caro senhor, peço licença para me retirar. Quem não acredita nas minhas histórias dificilmente levará uma boa impressão de Atenas.
E afastou-se com a maior dignidade.
Carlos Drummond de Andrade, em Contos Plausíveis.
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